O não estupro

Não vi o vídeo. Não fui atrás, não quis, achei que não devia. Mas vou escrever sobre a discussão, porque meu propósito não é – nem foi no texto anterior – condenar uns tantos jovens da periferia que praticaram o ato.

E, antes que alguém pense pronto mais um defendendo bandido, esclareço que considero o estupro um crime gravíssimo, que precisa ser punido com penas elevadas (mas não precisa, como brilhantes congressistas propõem a cada fato que causa clamor, aumentar as penas já existentes).

Apenas não quero fazer a discussão limitada ao fato em si. Tenho minha convicção, mesmo sem ter visto o vídeo, de que foi estupro, e essa convicção vem dos tantos relatos que já foram escritos. Mas vou guardar essa convicção para mim, e por isso os relatos me bastam. Ademais, se deixássemos de lado a discussão sobre ter sido ou não estupro, ainda assim a divulgação das cenas teria sido, em si, suficiente para caracterizar uma odiosa profanação do corpo feminino, e por isso justificar o repúdio havido.

Até saúdo a existência de tantas manifestações tendentes à absolvição. A presunção de inocência é sagrada e, se todos prezassem por ela sempre, tantas injustiças deixariam de ser cometidas. Ainda esta semana aconteceu em Porto Alegre o linchamento de homem que, segundo as notícias, foi falsamente acusado de estupro.

Mas a questão que quero discutir é outra. E parto daquela ideia nada original de que estamos sempre prontos a aceitar como verdadeiras as teses que se ajustam ao modo como pensamos. Acreditamos no que queremos e não acreditamos no que não queremos, ainda que não nos demos conta disso.

Posta a questão desse modo, dificilmente, nos nossos julgamentos midiáticos, alguém absolveria, a priori, acusados de praticar um estupro. Pelo contrário, de regra, não só as feministas o condenam. Nossa sociedade machista também precisa ser rigorosa contra o estupro, para dele defender suas filhas. Então, se vier semelhante notícia, assim vaga, sem outras informações, estaremos todos logo preparados para o linchamento, provavelmente não com nossas mãos, mas ao menos aqui na tela do computador.

Tomar lado conforme nossas convicções é assim mesmo, uma regra universal: se o policial descarrega sua arma contra o bandido, logo nos convencemos com as justificativas de legítima defesa, de que era um confronto e precisava tomar uma decisão em frações de segundo, portanto não foi execução; se derrubam a presidente que odiamos, as mais absurdas piruetas jurídicas nos convencem de que não é golpe. E assim seguimos nossa vida.

Mas, volto ao estupro: logo surge a informação de que a vítima não é uma pessoa de bem. Essa é mortal. A vítima dá pra qualquer um, tá metida com o tráfico, gostava de uma orgia, não sei que outra coisa mais? Pronto, metade dos passageiros desembarca. Não houve estupro, ela consentiu, ela merece.

Mas aí vem outra coisa ainda mais grave. Chegam esses contestadores e começam a falar em cultura do estupro. Isso é um absurdo, e daqui a pouco vai sobrar até pra mim. Crime é assim: comete quem quer e eu não tenho nada a ver com o que os outros fazem. E o pior de tudo é que não estamos a tratar com qualquer contestador: na linha de frente estão as feministas, essas mal amadas que querem nos botar a culpa por tudo.

Onde já se viu, cultura de estupro? Responsabilizar a sociedade por crimes cometidos por uns bandidinhos da favela? Aí o sujeito volta pro vídeo, olha várias vezes, lê o que andam dizendo, e conclui: aquilo nem ao menos foi estupro.

Pronto, tá resolvido: não houve estupro, por isso não há falar em cultura de estupro, e a discussão está encerrada.

Na imagem, O rapto das sabinas, de Rubens.

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