Caro amigo Lamachia. Antes de tudo, quero te cumprimentar pela eleição à presidência nacional da OAB. Como nos conhecemos mais de perto quando exerci a presidência da AJURIS e ainda estavas na presidência da OAB-RS, há muito sei do teu carisma pessoal e capacidade de articulação política. Tua eleição não foi surpresa, e está de parabéns a OAB, porque terá um grande presidente.
Aliás, isso já se revelou no teu discurso de posse, e é ele que me leva a produzir algumas reflexões. Não sei se sou inoportuno por te falar assim publicamente, agora que representas quase um milhão de advogados, enquanto eu já não represento mais ninguém, a não ser a mim próprio.
Mas é para o bem, e sei que hás de me perdoar. Aliás, a ênfase maior das minhas palavras é o louvor à proposta de unidade nacional. Meus poucos leitores sabem que tenho reiteradas vezes manifestado minha preocupação pelo fato de que o Brasil parece cada vez mais fechado para o diálogo.
Quando vi que disseste ser o Brasil teu partido e a Constituição tua ideologia, criei uma expectativa favorável que me levou à leitura do discurso. Se tivesses dito só isso, seria apenas uma frase de efeito, mas eu sabia que havia mais. A tônica do teu discurso responde exatamente a algo que há tempo reclamo: a necessidade de, num momento em que nossa sociedade parece estar fragmentada por uma guerra permanente, criar um espaço de diálogo construtivo, que supere essa polarização nefasta.
Usas uma frase que sintetiza tua proposta: “está na hora de reduzirmos o espaço de confronto para construirmos o espaço para o encontro”. Quero te dizer que assino embaixo.
Assino embaixo porque é dessa percepção da realidade que estamos precisando, de um antídoto ao círculo vicioso baseado em puxar o tapete do adversário, de construção de um consenso acerca do respeito democrático às regras do jogo.
Alguém haverá de pensar que o progresso se constrói no embate e é ilusória e tolhedora a ideia do encontro, mas para mim ficou claro que não fazes um convite a abolir as diferenças, e sim de que as ponhamos num debate democrático e respeitoso, que hoje está rarefeito.
Quero te dizer que sou um entusiasta da ideia, e podes contar comigo nessa luta.
Por outro lado – e perdoes novamente a ousadia – quero modestamente manifestar algumas diferenças de avaliação em relação à nossa realidade política.
Ainda concordo contigo quando fazes uma forte crítica à corrupção. Penso que, embora a corrupção seja endêmica em todos os países, é fundamental, não só para a democracia como para a construção de valores sociais mais solidários, que se consiga reduzi-la significativamente e punir quem a pratica.
Minha divergência está mais no fato de que não consigo vê-la como a causadora de todos os males. No meu entendimento, se fizermos semelhante avaliação, nos escaparão muitos fenômenos e tenderemos a simplificar a realidade, construindo um discurso maniqueísta que nos impedirá de dar a adequada solução para tantos problemas.
Considero, por exemplo, que a grave crise econômica que o Brasil enfrenta pouco se relaciona com a corrupção. Pelo contrário, se insere num quadro de crise internacional, para a qual hoje se apresentam novamente prognósticos pessimistas, e provavelmente se agravou por escolhas incorretas do governo no âmbito do planejamento das políticas.
Considero essencial termos essa percepção, porque do contrário veremos a luta contra a corrupção como uma panaceia para todos os males e a condenação de alguns corruptos como a solução para nossos problemas.
Aliás, vejo em semelhantes raciocínios um grave risco na estigmatização da política. Sei que não pensas assim, mas algumas das tuas ideias podem dar a entender isso. Quando fazes criticas à proposta de criação da CPMF e dizes que o governo aumentou as destinações ao fundo partidário, tenho ressalvas nas duas pontas.
Sei que a época não é boa para criar tributos, mas acho importante para nós, que integramos a sociedade civil, termos a dimensão da necessidade de sua existência para um Estado que não se reduza às funções mínimas e abandone os cuidados com saúde, educação, previdência e segurança.
Além disso, considero importante discutirmos a CPMF pelo critério da matriz tributária, em especial da substituição dos impostos pagos principalmente pelos pobres, aí incluída a sofrida classe média, por impostos pagos principalmente pelos ricos. No momento em que a riqueza do mundo se concentra alarmantemente, é importante que a questão seja posta também por esse viés, e seria bom aproveitarmos o momento para discutir quem deve pagar mais imposto.
Por outro lado, o aumento das destinações ao fundo partidário não pode servir para a estigmatização da política; pelo contrário, deve ser compreendido no contexto da proibição de doações de campanha por pessoas jurídicas, decisão importantíssima do Supremo, tomada em ação ajuizada pela própria OAB.
Trata-se de proibição fundamental para a democracia, em particular para combater a corrupção eleitoral e a tomada de assalto dos parlamentos pelas grandes corporações, mas ela precisa ter como contraponto o estabelecimento de formas alternativas de financiamento de campanha, inclusive o financiamento público, que hoje se dá pelo fundo partidário. A propósito, assim será o Fundo Democrático de Campanhas, ponto integrante do Projeto Eleições Limpas, defendido pela própria OAB, porque não se proíbe o financiamento empresarial de campanhas se do outro lado, claro que com valores mais modestos, não houver uma contribuição pública.
Como vês, são pequenas divergências que podem ser discutidas entre pessoas de boa fé, sem prejuízo dessa luta cívica pela unidade.
A unidade do debate, do diálogo, do respeito à opinião divergente, da defesa da democracia devem ser o nosso norte, e nisso sou um entusiasta da tua proposta. Quando pautadas a questão tributária, a do financiamento de campanhas, a do importante papel do Estado na promoção social, certamente teremos mais condições de aprofundar a discussão, sempre buscando a unidade.
Boa sorte nessa luta, irmão.
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O discurso de Cláudio Lamachia está aqui.
Nota tardia: escrevi a carta por ocasião da eleição de Cláudio Lamachia, semanas antes de a OAB, repetindo 1964, manifestar-se a favor do impeachment. Não foi isso que entendi na fala pela unidade nacional.
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