Há alguns dias, aconteceu em Brasília um encontro improvável: lá já estavam milhares de indígenas à espera do julgamento do marco temporal, quando chegaram as hordas bolsonaristas, em grande parte financiadas pelo agro, para a tomada do poder.
Que o golpe ao final não tenha saído é detalhe a que não me deterei; também não me aventurarei em prognósticos sobre o julgamento pelo Supremo: o que me leva a escrever é minha impressão de que algo mudou na percepção coletiva sobre o direito dos indígenas à terra.
Sinto no ar uma simpatia pela causa indígena que não existia por ocasião do julgamento da demarcação na Terra Indígena Raposa da Serra do Sol. Lembro que naquela época tinha impacto o discurso sobre ser absurdo destinar-se tanta terra a tão poucos indígenas, em prejuízo dos agricultores, que produzem alimento para a população. Ignorando o domínio ancestral dos indígenas, que ao longo dos séculos foram expulsos das suas terras, predominava esse argumento da utilidade social e do progresso da pátria branca.
O que mudou nesse período de pouco mais de uma década?
Não me parece que tenha sido uma súbita identificação com a causa indígena, principalmente porque o período coincidiu com a ascensão (seria possível acrescentar “e queda”?) de um protofascismo, que, se não chegou a alcançar a hegemonia no pensamento nacional, teve força para eleger com folga o presidente da República, aliado do agro. Talvez estejamos mesmo num momento de saturação com a irracionalidade do terraplanismo, mas o conservadorismo excludente de nossa sociedade escravista e racista dificilmente permitiria que nela se desenvolvessem sentimentos de empatia em relação aos indígenas.
A explicação é outra. Mesmo na onda conservadora que atravessamos, quem tem ao menos dois neurônios e é minimamente informado sabe da tragédia ambiental e da crise climática em curso, provavelmente já irreversíveis.
Dia após dia somos informados de recordes de desmatamento na Amazônia, da crise hídrica que seca rios e ameaça acabar com o Pantanal, da provável falta de água e de energia nas cidades, de temperaturas extremas que se repetem. Isso já não é apenas conversa de ambientalistas radicais ou cientistas equivocados, porque seus efeitos estão alcançando nossas vidas – e o percebemos.
Também basta ser medianamente informado para saber que as queimadas não são acidentais e que a derrubada da Amazônia tem, muito claras, as impressões digitais do garimpo e do agronegócio, enquanto as florestas resistem nas terras indígenas.
Por isso, é impossível deixar de ver, nessas terras, um modo de proteção contra a catástrofe que vem, ainda mais quando sabemos que é mínima a chance de nos beneficiarmos com a carne na mesa dos chineses e a soja transformada em ração para seus porcos.
O fato é que, na disputa entre o agro que envenena a terra e destrói a Amazônia e os indígenas que a preservam, o argumento do progresso e da produção de alimento para nossas mesas já não comove.
Para além dos argumentos jurídicos – que não deixam de ser políticos –, é isso que repercute na torcida pelos indígenas, quando encontram o agro nas ruas de Brasília. Ambos os lados tinham os olhos no Supremo, uns para verem reconhecido o direito à terra, outros com fins menos confessáveis, mas só um dos lados podia nos dar esperança de resistência à barbárie ambiental.
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