Uma semana de férias, em que, tendo tempo para ler mais notícias, o fiz de forma distraída, me causou uma sensação estranha. Foi como se a superficialidade da leitura me revelasse coisas novas, que de regra não vejo; como se, turista em minha própria terra, estivesse tomando um primeiro contato com a cultura desse estranho país.
Mas não é bem isso, porque esta descoberta do absurdo nada mais revela que o absurdo que sempre vi. Talvez a diferença esteja no fato de, ao fazer a leitura de sangue doce, me permitisse um estranhamento que não tenho no dia a dia, motivo por que notícias como as de sempre me causaram essa impressão esquisita, que um marciano que aqui viesse teria, ao ver essas cenas que transitam com naturalidade entre a tragédia e a ópera bufa, como num sonho fantástico.
Vi tantas coisas desse país surreal, e várias delas me tentaram a fazer comentários. E os faria, não tivesse me convencido de que deveria me concentrar na tragédia propriamente dita, justo por ser tragédia, embora tratada com o cinismo de sempre. O rompimento de uma barragem, que mata pessoas, contamina um rio, destrói a natureza e deixa prejuízos incalculáveis, é capaz de comover uma nação, mas recebe de políticos e imprensa um tratamento indigente, que, imaginando-se não sejam desprovidos de inteligência, deixa no ar a pergunta sobre o que os move a assim agirem.
A imprensa logo ecoa boatos de que o rompimento da barragem teria (sempre esta milagrosa forma verbal, que nada informa e tudo confunde) sido causada por tremores de terra. Ninguém se preocupou em verificar se havia registro em sismógrafos nem perguntou se uma obra de engenharia com tal risco potencial poderia ter sido construída sem atentar para cuidados mínimos em relação a fenômenos naturais.
Aí chega um secretário de Governo e diz que a empresa controlada pela Vale e pela australiana BHP foi vítima de acidente, chega um governador e dá entrevista coletiva na sede da própria empresa, chega um famoso senador da República e diz que não é hora de apontar culpados.
A Operação Panos Quentes passa a funcionar a pleno vapor, ignorando todos os indicativos de que ocorreu uma omissão criminosa, decorrente do afã de maximizar lucros sem se preocupar com as consequências.
Penso então: quando falamos – e ainda bem que cada vez mais falamos – na mão-de-obra escrava em países longínquos, não nos damos conta de que nós próprios, à nossa maneira, engrossamos esse grupo de países da periferia do mundo em que a vida e a dignidade humana pouco valem diante da busca de lucro máximo. Nós, que, como qualquer país subdesenvolvido, temos uma economia dependente da produção de commodities, nos permitimos ter imprensa e políticos dóceis, que se beneficiam diretamente de empresas desse porte e estão sempre prontos a passarem a mão por cima, a abafarem qualquer conduta criminosa, e para isso vale dizer que o responsável foi vítima, que a culpa foi da terra que tremeu ou que não é hora de apontar culpados.
Quem diz não ser hora de apontar culpados é porque espera que essa hora não venha. Estamos a tratar de homicídios, de vida animal e vegetal extinta em grande extensão, de um rio tornado estéril e um oceano que será contaminado, de prejuízos econômicos bilionários, mas nada disso interessa, porque se trata de uma empresa poderosa, que doou milhões nas campanhas eleitorais, que publica anúncios na imprensa e alimenta nosso PIB. Esse PIB indigente de um país indigente, que produz matéria-prima para mandar aos países ricos, em cujos territórios não acontecem semelhantes atentados à vida e à natureza.
Mas tudo isso pode ser esperado neste país da ópera bufa, no qual se lavra flagrante por desacato de quem teve a petulância de negar pedido de desculpas ao policial em que esbarrou. Neste país, é difícil imaginar uma efetiva punição aos poderosos, a não ser que milagrosamente aqui vingue uma cidadania que fale mais alto que os protocolos discursivos redundantes, esse nonsense proposital que nem ao menos se preocupa em nos fazer crer que alguma medida séria será tomada contra quem causou a tragédia.
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