Nunca senti aquela vertigem que atinge tantas pessoas quando se fala em impostos, principalmente quando o assunto é a criação de um novo ou um aumento de alíquota. Devo ser muito esquisito, porque muitas vezes até imagino que isso é uma boa.
Claro, tem a ver com o que penso sobre o papel do Estado e o que será feito com o dinheiro arrecadado. O fato é que há muito deixei de concordar com a visão da esquerda libertária acerca da nocividade do Estado; penso que ao menos no tempo histórico que coincide com minha própria existência o Estado tem uma função essencial, mesmo que seja só naquele papel keynesiano de regulação da economia, redução das desigualdades e fornecimento de serviços sociais básicos, como ensino, saúde, previdência, segurança, para lembrar só alguns mais notórios. E para isso é preciso muito dinheiro.
Também vejo como um senso comum rebaixado a associação entre aumento de impostos e aumento da corrupção (“vão aumentar os impostos para poderem roubar mais”) ou a ideia de que o dinheiro a ser buscado com o aumento do imposto poderia facilmente ser obtido com o combate à corrupção.
É evidente que, em tese, havendo mais dinheiro, pode sobrar mais para ser roubado; também é claro que um combate eficaz à corrupção – e mais ainda à bilionária sonegação fiscal, que tão pouco escandaliza as pessoas – deixaria mais dinheiro nos cofres públicos, mas isso são outras medidas, certamente imprescindíveis, mas cujo resultado não tem a imediatidade que pode ser obtida com um novo imposto.
Outro argumento que não me sensibiliza é aquele que estabelece uma relação entre os elevados impostos brasileiros e o baixo nível de resposta do Estado. Respondo a isso com duas observações. Primeiro, por piores que sejam as políticas sociais do Estado brasileiro, em muitas áreas ele está mesmo assim à frente de outros países desenvolvidos. Tome-se como exemplo a saúde e a previdência públicas. Além disso, se, arrecadando muito, oferece menos que, por exemplo, os países nórdicos, isso significa apenas que o nosso nível de desenvolvimento social está num grau muito incipiente, que talvez exija um esforço maior da sociedade para se aproximar do que já foi feito naqueles países.
Aliás, não sei se nossa carga tributária é maior ou menor que a dos Estados Unidos, da Europa, do Japão. E não porque não me venham números, que esses aparecem até demais; o problema é que, conforme o gosto do freguês, o número muda: como em tantas coisas, os dados são montados para sustentar a tese.
Se agora falo tudo isso é porque no Brasil e no Rio Grande os impostos estão na pauta: Dilma quer retomar a CPMF e mexer no Imposto de Renda; Sartori acabou de obter a majoração do ICMS.
Há quem diga que o momento é impróprio, e de fato, já havendo uma crise econômica cujos efeitos são crescentemente sentidos, o sacrifício é potencializado. Por outro lado, seja no plano nacional seja no estadual, parece que as medidas propostas não decorrem de outra coisa que não a crise. Ou seja: talvez o momento não seja bom para Dilma propor essas medidas, mas é justamente porque o momento não está bom que ela necessita propô-las. E o mesmo acontece com Sartori.
Mas há um outro ponto interessante nessa história: a tentativa de aumento da arrecadação apresenta uma oportunidade – mais uma – de a sociedade brasileira discutir a estrutura tributária. Na esteira do estudo de Piketty, que identifica um processo de concentração de renda que só pode ser contido ou revertido com a maior taxação dos ricos, a questão está posta na ordem do dia.
A estrutura tributária brasileira é muito mais injusta que a da maior parte dos países, inclusive os mais desenvolvidos, porque o forte de sua arrecadação se baseia nos impostos indiretos, sobre consumo, que atingem em maior proporção os mais pobres. São impostos regressivos, os mais representativos deles o ICMS e o IPI.
Enquanto o mundo não acorda para a necessidade de um imposto sobre fortunas, a CPMF pode de algum modo assumir o lugar de um imposto progressivo, em que os mais ricos tenham uma contribuição maior. Com a vantagem de que ali seria muito difícil a sonegação.
Não que vá haver diferença de alíquotas, mas aí aplica-se inversamente a lógica dos impostos sobre consumo: se os pobres gastam com consumo praticamente tudo o que ganham, são os ricos que mais fazem movimentações financeiras.
Já o aumento da alíquota do Imposto de Renda para quem tem ganhos de capital acima de um milhão, de 15% para até 30%, seria uma medida para cobrar mais dos mais ricos. Há muito o Imposto de Renda onera demais a classe média e até os mais pobres, porque o reajuste da base de incidência não acompanha a inflação. Já os mais ricos, além de encontrarem facilidades para sonegar, por não terem sua renda vinculada a salário, respondem com a mesma alíquota de 27,5% que atinge quem ganha pouco mais de R$ 4 mil.
A proposta de aumento do imposto para quem tem ganhos de capital é ainda tímida, mas sinaliza num sentido importante, de se exigir mais de quem mais pode.
Nesse plano, o aumento do ICMS é um gol contra, justamente por promover o aumento de um imposto regressivo. E não vou culpar o Sartori por isso: ele mexeu num imposto de competência do Estado, cuja arrecadação fica para o Estado. Claro que poderia ter mexido no ITCD, aumentando a alíquota de 4% para 8%, máximo permitido em nosso país e ainda muito abaixo dos países desenvolvidos, mas provavelmente o resultado financeiro disso teria sido bem mais modesto, de modo que, por falta de opções, elevou um imposto regressivo.
Talvez – mas aí talvez seja pedir demais dos governantes – União e Estados pudessem fazer um ajuste pelo qual parte da CPMF fosse para os Estados e o ICMS permanecesse num patamar inferior.
Quem sabe um dia?
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Sobre o tema, escrevi Meu pai e Piketty e Cotas
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