Há dois anos, escrevi no Facebook sobre os ciganos expulsos da França. Inesperadamente para mim, a publicação teve então muitos compartilhamentos. Fui procurá-la agora, porque a temática de fundo é a mesma que levou ao trágico destino de Aylan.
Me surpreendi, porque não achei propriamente um texto, só um parágrafo. Mesmo assim, vi nele outra coisa em comum, além da insensibilidade europeia, com este caso que agora comoveu o mundo.
Transcrevo:
Os judeus foram as vítimas mais notórias do holocausto, mas não as únicas. Homossexuais, comunistas e também ciganos foram igualmente perseguidos e exterminados. A perseguição aos ciganos é centenária e não cessou. Agora, a França, empenhada, como tantos países europeus, em fechar suas fronteiras aos pobres da África, América Latina e do leste europeu, deporta para Kosovo família inteira de ciganos e provoca protestos em massa por um detalhe simbólico da ação: interrompeu excursão escolar para dela tirar a filha de quinze anos. Meu apoio aos protestos pelo fim do apartheid europeu.
A xenofobia, o ódio contra imigrantes, o fechamento das fronteiras e sua expulsão sistemática são uma constante europeia, há anos intensificada na mesma proporção em que se intensificou a busca desse porto seguro por refugiados de guerras ou pobres à procura de sobrevivência.
Mas não é sempre que isso nos sensibiliza, embora ocasionalmente o noticiário nos informe de centenas de mortes por afogamento no Mediterrâneo. Ocorre que, anestesiados para a tragédia alheia, somos capazes de ver semelhantes cenas na TV sem ao menos nos engasgarmos no jantar. Assim seguimos nossa vida, em que nós próprios já temos problemas suficientes, e aquilo fica no máximo como uma coisa chata que vimos na TV, assunto, no dia seguinte, para alguns minutos de conversa com os colegas de trabalho.
É necessário algo mais para nos tirar da zona de conforto. Às vezes é um pequeno detalhe, como o fato de que Leonarda, a estudante cigana expulsa da França, foi arrancada de uma excursão escolar. Já a morte de Aylan foi antecedida de milhares de outros afogamentos, inclusive de crianças, mas que não renderam a foto chocante de um menino que parecia dormir. Até mesmo as roupas coloridas que usava, como as que um filho nosso poderia vestir num passeio, dão a ideia de interrupção, ausente nas outras mortes, de seres sem face, que aos nossos olhos já estavam destinadas a sucumbir.
Leonarda e Aylan deixam, assim, de ser apenas parte de multidões informes que sucumbem às inevitáveis injustiças do mundo, para subitamente adquirirem feição humana, inclusive com o direito de serem chamados pelo nome.
Não sei se isso ajudará em muito a vida dos outros refugiados. É claro que alguns minutos da atenção do mundo podem fazer alguma diferença; além disso, está claro que as autoridades europeias têm em suas mãos um problema, em grande medida criado por elas próprias, com suas guerras. Mas nós, pessoas comuns, logo teremos esquecido de Aylan, como já havíamos esquecido de Leonarda, e seguiremos nossas vidas, até que a próxima foto chocante nos desperte por alguns instantes da letargia.
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Escrevi também Somalis e haitianos.
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