Deixai toda esperança, vós que entrais. Às vezes penso que a advertência de Dante a quem entra no mundo dos mortos deveria vir antes, quando se entra no mundo dos vivos.
Ter esperança é como ter fé, e a dúvida é um tormento constante de quem se ocupa a dar um sentido à vida: se a vida é busca, cada frustração é sinal de que a humanidade é incapaz de se mostrar sublime.
O Éden imaginado tem melhor solução para os crentes, que veem na transcendência divina uma compensação mais que aceitável para a imperfeição humana: algo melhor, intangível, nos espera ao final, quando nossas limitações, próprias deste plano inferior, serão apagadas.
Já quem, crente ou não, busca no plano terreno a realização de uma utopia, provavelmente se defrontará ao longo da vida com crises de fé similares às dos religiosos que em algum momento se atormentam com a dúvida sobre a existência divina. Com a diferença de que a dúvida terrena é mais urgente, mais imediata, diferente da outra, cuja resposta definitiva de qualquer maneira fica postergada para depois do último suspiro.
A resposta terrena deve vir no breve intervalo em que nos movemos neste planeta, e nos impõe antes de tudo saber o que buscamos, para depois oscilarmos entre esperança e desesperança, como é próprio da condição humana.
Com ou sem inspiração transcendental, as grandes correntes revolucionárias sempre foram portadoras da esperança de realização do paraíso na Terra, da busca de uma utópica fraternidade universal, cuja realização representará a redenção humana. De comum entre elas, sempre a fé no homem, como ser capaz tomar a si esse devir.
Mas, assim como a busca do paraíso celestial, também esta é capaz de gerar abalos nas convicções, certamente maiores depois da degeneração e do final malogro dos regimes construídos em nome de um projeto libertário.
Ainda antes de o mundo conhecer em toda sua extensão os crimes do stalinismo, empenhado na construção desse mundo fraterno, Gramsci já cunhara sua expressão acerca da necessidade de se combinar o otimismo da vontade com o pessimismo da inteligência.
Se penso, devo ser pessimista, não só quanto à possibilidade de construção e realização de um projeto político que leve a uma sociedade solidária, como também em relação à existência de pessoas suficientemente virtuosas para sustentá-lo.
Na minha memória de leitor, ocupam especial destaque dois artigos de Bobbio*, em que aparece a angústia diante do temor de queda da democracia italiana dos anos 70. Uma das lembranças que tenho dos textos, porque na época em que os li pensei “isto sou eu”, foi a confissão da sua postura quase intuitivamente contestadora, de ser pessimista diante do interlocutor otimista e otimista diante do interlocutor pessimista, como que a buscar constantemente um equilíbrio que não permitisse o excesso de otimismo ou o excesso de pessimismo.
Mas os artigos são bem mais que isso, apresentando, na análise de um poder em crise, essa combinação gramsciana entre a vontade otimista e a razão pessimista. Diz Bobbio: “se penso, tenho medo, e se me abandono ao desejo, posso ainda esperar.” Mas, como homem de razão, que percebe o mau uso que os poderosos fizeram do poder e os não poderosos da liberdade, conclui pelo dever de ser pessimista.
No segundo texto, escrito em razão das incompreensões causadas pelo primeiro, Bobbio distingue pessimismo da inteligência, compatível com otimismo da vontade, da resignação, por ele definida como pessimismo da vontade. O pessimista teme o pior por desejar o melhor, e nele esperança e temor são estados de espírito que se convertem continuamente um no outro.
Esperança e temor não são opostos: o contrário de temor é temeridade, arrogância, imprudência; o contrário de esperança é desespero.
Mas, se Gramsci trata do pessimismo da vontade e do otimismo da inteligência como revolucionário que quer transformar o mundo, se Bobbio assim escreve porque se preocupa com a democracia italiana, agora abstraio de seus discursos as realidades e projetos históricos de que tratam, para me ater somente ao indivíduo que faz a história e ao qual em última instância ela se destina.
A lembrança de Gramsci que agora vem, muitos anos depois de o descobrir, a lembrança de Bobbio, quase tantos anos quantos depois de ler As ideologias e o poder em crise, são causadas pelo encontro com outro italiano, no qual encontro exemplos que, em meio à mais absurda desumanização, teimam em reafirmar nossa condição humana, como seres capazes de, mesmo onde a esperança foi abandonada, demonstrar solidariedade na miséria e revolta na injustiça.
Primo Levi escreveu É isto um Homem trinta anos antes daqueles textos de Bobbio, mas meu tempo de leitura é outro, e a faço agora. Primo fala de um lugar onde consegue sobreviver quem furta uma fatia de pão e morre quem a tem furtada, um lugar sem otimismo ou pessimismo, porque otimismo e pessimismo são dimensões do pensamento humano, inexistente em um campo de extermínio, lá onde os indivíduos são aniquilados antes mesmo da morte física. Mas até nesse lugar surgem lampejos de humanidade, que permitem ver esperança lá onde nenhuma esperança é permitida.
Ao ali entrar, Primo não ouviu “ai de vós, almas danadas”. O Caronte que se apresentou não era balseiro, mas um soldado alemão, que gentilmente perguntava aos recém chegados se tinham relógio ou dinheiro: a tragédia não se anunciava na forma de uma imprecação sepulcral, mas de um patético achaque, no qual havia um óbvio subentendido, o de que esses objetos já não eram necessários a quem entrava no inferno.
Nesse lugar amaldiçoado, em que até a vontade de permanecer vivo se esvaía, e do qual, segundo um peculiar humor negro, a única saída era pela chaminé, todas as esperanças cediam, e não havia lugar para a solidariedade ou a revolta.
Mas então acontece Lourenço: um operário italiano que por seis meses, todos os dias, leva a Primo um pedaço de pão e o resto das suas refeições, lhe dá uma camisa cheia de remendos e até consegue enviar um cartão postal para a Itália, obtendo resposta. E faz tudo isso sem aceitar compensação, porque é simples e bom e não pensa em fazer o bem para obter algo em troca. Lourenço é a negação do inferno, a vida onde as almas já morreram.
Também representa vida o homem que será enforcado, um daqueles escravos inermes e esgotados que juntaram forças para explodir um forno crematório de Birkenau: todos os presos são chamados a presenciar o enforcamento e ouvem seu grito final: “camaradas, eu sou o último!” Os camaradas, vil rebanho, não têm coragem para ao menos um sussurro de assentimento; permanecem todos encurvados, cinzentos, cabisbaixos. Mas o grito foi dado.
Não, se mesmo entre os que ultrapassaram os umbrais do mundo dos mortos há quem tenha se recusado a deixá-la, não é a nós, que estamos no mundo dos vivos, que há de faltar a esperança.
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* O dever de sermos pessimistas e A lição da história, em As ideologias e o poder em crise.
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A ilustração é de Travessia de Caronte, de Alexander Litovchenko.
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