Descobri mais uma. Desculpem a ignorância, mas não conhecia. Incrível ter sobrevivido tantos anos no mundo do Direito sem ter ouvido falar em cártula chéquica.
Geralmente me viro. Sei que tudo começa com a exordial, também chamada de incoativa. Depois disso, só vai: escopo, acostar, vergastado, supedâneo, louvado, perfunctório, e por aí vai.
Este vocabulário resiste bravamente a qualquer tentativa de dessacralização, e parece pegar, como um vírus imune a vacinas, assim que iniciam as primeiras cadeiras da faculdade. Ou talvez um pouco depois, quando o estudante começa a estagiar.
Ao se familiarizar com petições ou despachos, o estagiário logo se depara com modelos escritos em algum lugar do passado, mas sempre úteis para se encaixarem na necessidade presente. E, como aprendiz que dá seus passos iniciáticos numa sociedade secreta, logo compreende a utilidade desse linguajar com odor naftalínico, onde se lê aluguer ou de folhas, como se manuseasse as Ordenações Manuelinas.
Isso lembra a viagem para o aprendizado de magia em Hogwarts, para onde vamos de trem a vapor, prontos para, desde o ingresso togados, nos iniciarmos nos feitiços, ansiosos para voar sobre vassouras.
É uma prática que se reproduz, e só por isso falo dos estagiários, de resto pessoas normais, que às vezes até se sentem livres para tratar o juiz por tu, sopro de humanidade num Judiciário cheio de Egrégios, Colendos e Excelentíssimos. Mas, na hora de escrever, embora estejam na Estação King’s Cross, vão correndo para a Plataforma 9 ¾.
Infelizmente, são tragados por esse hábito de falar uma linguagem incompreensível aos mortais, e o fazem com gosto, justamente porque ao fazê-lo se sentem admitidos nessa misteriosa confraria dos operadores do direito. Eles precisam falar e escrever assim para se tornarem dos nossos.
É claro que isso não é uma exclusividade dos operadores do Direito; existe na Medicina, na Engenharia e em tantas disciplinas quantas forem as especialidades, embora nas outras áreas os falantes geralmente não pareçam saídos de uma caravela de Cabral (nisso os programadores de informática nos dão de dez a zero, porque além de tudo seu jargão é num inglês cheio de neologismos tecnológicos).
Também não é o caso de pretender o fim da linguagem técnica: onde há um conhecimento específico, há também uma linguagem específica. Por isso, sempre haverá embargos de terceiro e se continuará a dizer legítima defesa putativa, expressões de institutos jurídicos que exigem um léxico próprio a este ramo do conhecimento.
A questão é saber o que é constitutivo e o que é adorno. E mais: qual é a função desse adorno. Muito se fala na necessidade de um linguajar de mais fácil compreensão ao leigo, de modo que, por exemplo, ele consiga compreender uma sentença. Mas como, um Direito assim democrático, que permita a qualquer um entender o que escrevemos, se passamos tanto tempo aprendendo a escrever difícil? Como vão nos respeitar? E como cobrar honorários mais caros se nem ao menos se mostra ao cliente uma peça que o convença de estar diante de uma arte impossível de ser desvendada? Data vênia, ser parte de Hogwarts e poder dizer palavras mágicas não é pra qualquer um.
Só lamento não ser possível neste caso aplicar um dos seus feitiços: bem queria poder apontar uma varinha e dizer Riddikulus. Mas, não, tudo isso é muito mais do que mera falta de noção de ridículo; é a consolidação de um poder nas mãos dos iniciados. E poder, bem sabemos, é uma coisa que não se entrega assim no mais.
E dê-lhe falar naftalínico.
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