Se ontem usei minha lógica de araque para me posicionar contra a redução da maioridade penal, hoje usarei minha vulgar dialética para fazer a crítica da crítica da Lava Jato.
Desde logo esclareço que não vou discutir se Moro é a favor ou contra o Governo, se ele está de boa ou má-fé. Também não tratarei da repercussão na crise política, e nem ao menos falarei dos delegados que fizeram grupo no Facebook contra a Dilma ou do procurador da República que vai fazer proselitismo em culto (credo, que falta de compostura!).
Devo ainda fazer outra advertência, que certamente deporá muito contra o que eu disser: embora operador jurídico, Direito Penal não é meu chão e minha curiosidade em relação à Lava Jato não é tanta que acompanhe diariamente as notícias e saiba quem foi preso, quem foi solto e em que circunstâncias. Nesse ponto, estou numa posição pior que a do trabalhador que lia e perguntava quem construiu Tebas.
Mesmo assim, li várias das críticas que sistematicamente são dirigidas à condução do processo sob o ponto de vista da defesa das garantias, que apontam abusos que vão desde a violação do princípio do juiz natural (esta é fácil até para um leigo: como foi parar em Londrina um processo que envolve corrupção na Petrobrás?) até longas prisões processuais, que às vezes parecem destinadas a forçar a delação premiada.
Quero dizer que concordo com as críticas. Mas, sempre tem um mas. A questão que há muito tempo me preocupa – até tratei dela num texto provocativo – é o fato, negligenciado pelos críticos, de que esse sistema de garantias parece inviabilizar qualquer enfrentamento eficaz de um tipo muito especial de criminalidade, aquele que se constrói à sombra do Estado, com complexas redes de proteção, se cronifica e pereniza, minando os próprios fundamentos da sociedade democrática, seja porque faz sangrar os cofres públicos, seja por tornar o Estado refém da criminalidade nele hospedada.
Em outro lugar, ilustrei assim o que digo: se uma bactéria muito resistente se instala no corpo e resiste a qualquer antibiótico, precisamos investigar outros meios para enfrentá-la, antes que o próprio corpo sucumba.
Eu e minha mania de usar exemplos impróprios: fui prontamente criticado por utilizar uma linguagem organicista, tão ao gosto do nazismo. E, acrescento eu, largamente utilizada por todos os tipos de funcionalismo. Mas, como o que eu queria era ilustrar minha ideia, acho que deu para entender.
Mas vou eu para minha dialética vulgar: se a tese, objeto de crítica, é a Operação Lava Jato, com seus atropelos processuais; se a antítese, com a qual concordo, é a crítica garantista a esses atropelos; qual será a síntese que me permitirá, eu que sou menos que o personagem brechtiano, acreditar na construção de uma teoria possível que permita, mantidas as garantias constitucionais, elucidar esses crimes que minam o Estado?
Vou desde logo adiantar duas respostas que não me satisfazem. A primeira é a de que o Processo Penal não existe para isso, que seus fundamentos estão justamente em assegurar as garantias. Isso o tornaria absurdamente disfuncional (permito-me utilizar a palavra, já que falei em funcionalismo), porque o processo como existe continuaria a prender os acusados de crimes mais simples, aqueles em relação aos quais é relativamente simples produzir prova, aí certamente incluídos todos os crimes praticados por pobres, e estariam cobertos pelo véu das garantias justamente os crimes complexos, aqueles praticados por sofisticadas quadrilhas, cujo modus operandi consegue encobrir e embaraçar os vestígios da prática criminosa.
E não me digam que defendo a violação das garantias constitucionais, porque não o faço, nem pretendo justificar a Lava Jato; apenas aponto o que me parece ser uma fragilidade da crítica, que a torna estéril.
Uma segunda resposta, muito comum, que não me satisfaz, é a lembrança do que aconteceu na Itália, com o estabelecimento de uma relação causa-efeito entre a Manos Pulitas e a ascensão de Berlusconi. Com todo o respeito, Berlusconi não chegou ao poder por causa da Mãos Limpas; ele chegou ao poder poque aquela operação fez ruir o corrupto sistema partidário italiano, deixando um espaço vazio de poder, ocupado pelo arrivista milanês.
Sugerir que isso acontecerá no Brasil e será consequência da Lava Jato é de um total mecanicismo, porquanto presume, para países diferentes em momentos políticos diferentes, o mesmo resultado. Não descarto que um político populista de direita chegue ao poder no Brasil, mas não descarto inúmeras outras possibilidades e nem ao menos vejo sinal de uma implosão do sistema partidário brasileiro.
O certo é que um episódio político traumático ocorrido em outro país não pode servir de argumento contra uma investigação séria da corrupção, com a devida persecução criminal, evidentemente que como ação estatal, e não como instrumento para influir nos rumos políticos do país.
Resumindo: concordo com a antítese garantista à tese morista, mas nem a história nem a teoria se fazem com negações, e a tomada de órgãos estatais como reféns do crime organizado exige, para o bem do próprio Estado e da democracia, que haja instrumentos eficazes de investigação e punição. Se os que hoje existem violam garantias, se quem defende as garantias é eficaz na crítica mas não apresenta soluções, aguardo uma síntese dialética, que, superando as violações constantes da tese e superando a mera negação contida na antítese, se empenhe em construir uma solução, que permita acreditar no resgate do Estado sem a violação das garantias.
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