Notícias de Viamão

O noticiário da segunda-feira traz dois fatos que bem ilustram a permanente luta pela civilização, em que ora se avança, ora se retrocedem alguns passos.

Primeira notícia. De vez em quando ouvimos que isso acontece em outros lugares do Brasil, e ainda recentemente alcançou repercussão nacional, pelo espancamento e morte, amarrado a um poste, de um suspeito de furto, que depois se descobriu ser primário.


Depois do Maranhão, chegou a vez de Viamão. Neste domingo, populares lincharam um suspeito de tentativa de roubo. Não sei se também era primário ou se tinha longa ficha criminal, mas a barbárie está aí, aconteceu bem ao nosso lado.

Como fenômeno, assusta, dada a repetição em diferentes lugares do país, indicando certa banalização de uma prática primitiva, que o noticiário internacional às vezes situa em países asiáticos, em que mulheres acusadas de adultério são apedrejadas até a morte.

Qual é a causa desse fenômeno no Brasil? Já ouvi tentativas de explicação que as situam na descrença na capacidade punitiva do Estado ou até mesmo revolta mais difusa contra tudo o que vai mal, em que a população, em situações em que assume coletivamente um papel de justiceira, parece voltar ao estado da natureza, tomando a si o papel de repressão e vingança social que o Estado, seja por sua dificuldade investigatória, seja por seus ritos garantidores, não cumpre na medida desejada pela horda.

Certo é, de qualquer maneira, que a civilização cede quando acontecem semelhantes fatos, cuja ocorrência em si serve de estímulo à repetição, como inspiração à barbárie.

Já a notícia civilizadora está na prisão de um ex-agente da polícia argentina, que vivia clandestinamente em um sítio de Viamão. Identificado com integrante de um grupo responsável por diversos sequestros e assassinatos, entre os quais o de Tenorinho, músico que acompanhava Toquinho e Vinicius em uma turnê argentina em 1976. Supostamente confundido, visto que não tinha atuação política, Tenorinho teve o azar de cair nas garras da repressão argentina, e seu corpo nunca foi localizado.

Ao contrário do que aconteceu no Brasil, a Argentina não esqueceu nem perdoou os responsáveis pela morte de 30 mil opositores. Não houve anistia para o terrorismo de Estado, e a luta democrática por passar a limpo esse período negro e punir os agentes do terror estatal é um exemplo para quem quer construir um Estado democrático, que afirme para sempre: ditadura nunca mais, tortura nunca mais.

São as notícias de Viamão. Uma boa, uma ruim. E continuamos na luta pela democracia e pela civilização.

A foto é de Tenorinho, pianista do grupo de Toquinho e Vinicius, sequestrado, morto e desaparecido pela ditadura argentina.

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2 respostas

  1. Avatar de Rejane Luthemaier
    Rejane Luthemaier

    querido amigo Pio Giovani,
    Os acontecimentos de Viamão nos mostram a atualidade chocante do que Aldous Huxley – alucinadamente – escreveu no livro “Admirável Mundo Novo”;
    “Os seres humanos são “produzidos” no sentido industrial do termo, em fábricas especializadas – os “centros de incubação e condicionamento” – segundo modelos variados, que dependem das tarefas muito especializadas que serão atribuídas a cada um, e que são indispensáveis para uma sociedade obcecada pela estabilidade.”
    Sensível ao assistimos: “que a barbárie está aí, aconteceu bem ao nosso lado”, fica-se com o temor de que se repita o que aconteceu na ditadura, de que o medo ganhe potência e diminua o significado das palavras democracia e civilização.
    Obrigada pelas reflexões.
    um grande abraço,
    Rejane

  2. Avatar de Marcelo Regius Gomes Bastos

    Quando da divulgação dessa atrocidade ontem pela mídia, ela própria se confunde pois apenas coloca que os suspeitos não foram encontrados, deixando vago se teriam sido os suspeitos da tentativa de assalto ou do linchamento, homicídio qualificado.Barbárie ou civilização? Esta é a questão.

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