Será que, se o polo magnético da Terra se deslocasse, mudaria seu eixo de rotação? Será que mudariam os pontos cardeais? O norte continuaria norte?
Pois tenho pensado que na política o polo mudou de lugar há muito tempo e a bússola informa outras direções. Lembro disso agora porque insistentemente a imprensa diz que o Syriza é de extrema esquerda. Quem viu o programa do Syriza, vê seus representantes, vê suas políticas, bem sabe que ele se opõe à política de austeridade da União Europeia, que sufoca os países da sua periferia. Sabe também que a política que tenta implementar na Grécia é de redução das desigualdades sociais, de saída da crise por meio de investimentos, tudo isso com o forte apoio de uma população que não aguenta mais ouvir falar em arrocho.
Extrema esquerda? São de extrema-esquerda as prefeitas que o Podemos elegeu em Madri e Barcelona?
Pois houve um tempo em que extrema esquerda era outra coisa. Podiam ser os anarquistas, com sua negativa da política e ideia de abolição imediata do Estado; podiam ser grupos que se negavam a participar da política parlamentar; podiam ser os que defendiam luta armada. Eram, em suma, os que estavam, no conteúdo ou na ação, bem mais à esquerda que a própria esquerda.
Eu, nos meus vinte anos, situava na extrema esquerda a Libelu e a Convergência Socialista. Claro que outros, considerados pelos mais à esquerda como reformistas, ampliavam este leque, porque consideravam a si próprios como os revolucionários genuínos, os que seguiam a linha justa. Então, a definição sobre quem era extrema esquerda podia se ampliar ou estreitar, a depender de onde o próprio observador se encontrava. Aliás, é uma regra universal, que vale para qualquer época: enxergamos o mundo pela visão que nos é dada pelo lugar em que estamos.
Mas não havia muito erro, e de nenhum modo o Syriza ou o Podemos seriam então considerados de extrema esquerda.
Por que o são hoje? Encontro duas explicações, e talvez ambas sejam válidas.
A primeira tem a ver com a imagem de deslocamento do polo magnético. O mundo mudou radicalmente nas últimas décadas. O sonho generoso da revolução desvaneceu, os que ainda acreditavam no stalinismo ficaram órfãos, a ideia do proletariado industrial como classe revolucionária foi desmanchada pela revolução pós-industrial, até mesmo a pobreza extrema rareou, deixando de ser o combustível sempre presente de revoltas.
E se, mesmo para quem não acreditava nela, inclusive – e principalmente – para os governos ocidentais, a União Soviética representava um contrapeso, que inibia políticas antissociais, seu processo de derrocada facilitou o fim das políticas keynesianas, guinada da qual decorreram a crescente concentração de renda e a retirada de direitos sociais.
Resumindo: seja porque já não se acredita na revolução, seja porque não se a deseja, seja porque ela se afastou do horizonte, o polo magnético se deslocou. Houve uma acomodação histórica (e a palavra acomodação me faz pensar já não em polo magnético mas em placas tectônicas), que trocou algumas coisas de lugar e deixou alguns desses lugares despovoados. A extrema esquerda como a conhecíamos poderia integrar as listas do IBAMA, como parte da fauna em risco grave de extinção.
Por essa ideia, e na falta de quem ocupasse seu lugar, o próprio lugar teria simplesmente deixado de existir, criando-se um novo espaço definidor para extrema esquerda, bem mais ao centro que antes, e hoje ocupado por quem representa não muito mais que os nacional-desenvolvimentistas de outrora. Ou, já que falamos em Europa, os que defendem o que os seus governos nacionais faziam há cinquenta nos.
E um bom modo de percebermos esse movimento é ver o que aconteceu com a centro-esquerda nos seus países mais importantes: o Partido Socialista de Hollande, o Partido Trabalhista que foi de Tony Blair e a Social-Democracia que nem me lembro quando foi Governo, mas hoje é não mais que sombra de Merkel, dão uma pista do deslocamento político da social-democracia.
Mas há outra explicação, e esta acusa um maquiavelismo do establishment. Não acredito ser demasiadamente paranoico quando a imagino. Bem sabemos como é eficaz rotular: é uma coisa muito eficiente quando se quer, pela adjetivação, atingir um resultado, no caso o de desqualificar o adversário.
O certo é que a Grécia luta uma batalha desigual para não quebrar, e é amassada pela política ortodoxa da União Europeia, sob o comando implacável e arrogante da Alemanha. Está sufocada por uma dívida impagável, causada pelas receitas dos mesmos que agora exigem dela sacrifícios insuportáveis. Ficou entre a cruz e a espada, ao se ver entre a aceitação de um plano espoliador e a expulsão da União Europeia. Sua aceitação do acordo que lhe impuseram foi bem definida pelo primeiro ministro Tsipras, numa sinceridade rara em governantes: “Eu assumo a responsabilidade por um texto no qual não acredito, mas que assinei para evitar um desastre ao país.”
Então, nesse léxico oficial, extrema-esquerda talvez seja uma questão só de postura: é extrema-esquerda quem tem a petulância de resistir, de dizer não, ainda que no momento seguinte seja devidamente enquadrado. Quem diz não às políticas ortodoxas, quem quer soltar o torniquete, quem aposta na recuperação econômica, quem quer recuperar o salário, quem não aceita desmantelar a previdência pública, todos esses são extrema esquerda. Hoje, os keynesianos são extrema esquerda: basta ver o que defendem Krugman, Stiglitz, Piketty e o grego Varoufakis.
Carimbar alguém como extrema-esquerda assusta. A pessoa que, mesmo com a aposentadoria encurtada e cada vez com mais dificuldades, quer continuar levando sua vidinha e está pronta para acreditar que esses comunistas vão tirar sua casa, treme só de ouvir falar em extrema-esquerda, mesmo que em seu programa esteja justamente a preservação dessa aposentadoria.
E o pior é que a moda pega não só para o espectador desatento, que nem se preocupa tanto com a Grécia, mas certamente se assustará ao ver que quem levou tanta gente para as praças é a estrema sinistra, porque este é o destinatário final da notícia, aquele cão pavloviano que deve justamente ser assustado; a moda pega antes, nos próprios emissários da notícia, nos formadores de opinião, mesmo os que se consideram críticos, e que em coro botam o chapéu no Syriza.
Resumindo: provavelmente o polo magnético tenha se movido um pouco ou mesmo um tanto, mas não é por isso que a bússola aponta para outro lado: é porque a quebraram mesmo. E não foi por acidente.
E eu, que há muito me pensava um reformista, subitamente passo a defender a extrema-esquerda.
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