Nós, classe média, e o outro

Somos todos classe média. Eu que escrevo, tu que me lês, somos classe média. Também é classe média quem pede o impeachment usando a camiseta da Seleção Brasileira (credo!) e quem acha que todas as investigações sobre corrupção são armação. Coxinhas e petralhas são quase todos classe média.

Como nós, classe média, vemos o outro? Não digo o outro burguês, o rico capitalista, porque este não é bem outro: este é nós com (muito) mais dinheiro. Claro, muitos de nós certamente terão várias reservas diante de um rico, seja por valores ideológicos, seja por eventuais dúvidas sobre o modo como construiu ou mantém sua riqueza, mas não é disso que falo. Não estranharíamos, por exemplo, ao menos não muito, sentar ao lado de um rico no avião, e temos em comum com ele a possibilidade de viajar a Paris (pequeno detalhe: para o rico, viajar a Paris é uma brincadeira, para muitos de nós uma extravagância, mas não está fora do alcance dos sonhos).
Também não há um limite geográfico para definir o outro: lembro da comoção mundial com o atentado ao Charles Hebdo e do silêncio que cercou chacina cometida naqueles mesmos dias pela polícia da Bahia em um bairro pobre, com número de vítimas maior.

O outro de que falo é o excluído social: eventual atentado no metrô de Nova Iorque nos comoveria e assustaria; chacina em favela brasileira não (e provavelmente vamos pensar que os mortos, ou parte deles, eram bandidos).

Mas, como será a percepção de que o outro está aqui pertinho, quase ao meu lado? A foto da capa da Zero Hora deste domingo não é do Haiti, não é dá Guiné: é de Porto Alegre. Olhar para ela nos impacta, assusta, quase nos revolta, porque o outro invade nosso mundo, mexe com nossa zona de conforto.

No entanto, sabemos que o susto vai passar: o fato de que o outro está aqui ao meu lado não o põe no meu mundo, e vou seguir normalmente a minha vida.

Aliás, como não tenho nenhuma empatia por essa pessoa cuja vida nada tem a ver com a minha, só posso enxergar este outro como nós, classe média, o vemos: um perigo. Aquela criança que na foto toma banho de mangueira vai crescer, e o que fará ela dentro de dez anos? Dentro de cinco, talvez? (Claro que temos a solução: reduzir a maioridade penal, para proteger nosso mundo de classe média.)

Geralmente, essa falta de empatia não é deliberada, afinal, não somos pessoas más; mas o outro pertence a um departamento que não nos diz respeito, exceto quando nos atinge como ameaça. Alguns de nós se compadecem – talvez até contribuam agora com a campanha do agasalho –, mas isso entra no capítulo das boas ações, para as quais não é necessária nenhuma identificação com a humanidade que ali está estampada.

No mais, tendemos a ser hostis: dizemos populistas os programas sociais do Governo, somos contrários a qualquer política de quotas, nos incomodamos se quem senta ao nosso lado no avião tem perfil de rodoviária.

Se o inferno são os outros, neste caso é um outro bem definido, é aquele que não participa do nosso mundo, e por isso não merece nossa simpatia ou compreensão. Isso está marcado num lugar muito profundo das nossas almas e é por nós carregado sem ao menos termos consciência de que interfere em nossos conceitos e julgamentos.

E não falo só dos julgamentos que todos nós fazemos a cada momento da nossa vida: falo também das decisões judiciais.

Certa feita, seguramente há mais de dez anos, Zero Hora fez uma reportagem sobre uma nova turma de juízes, entrevistando vários deles. Não lembro data, não lembro detalhes, não lembro nomes, mas lembro que um deles disse mais ou menos o seguinte: “sou liberal em matéria de família, sou conservador em matéria de propriedade”.

Aí está a marca da nossa classe média, que certamente se reflete na cabeça do juiz, um juiz de classe média. E aí reside a razão de, por exemplo, o Judiciário aceitar sem maiores dificuldades o casamento gay, mas seguir aplicando severas penas a quem é pego com algumas pedras de craque ou prontamente expedir mandado de reintegração de posse quando ocorre uma ocupação coletiva de terras.

Claro, falo de um comportamento médio: nem todo juiz reconhece o casamento gay, nem todo juiz é conservador no âmbito cível ou criminal, mas é perceptível a maior resistência do Judiciário quando a demanda envolve questões sociais.

O avanço na área de família pode acontecer porque o capitalismo, e com ele a classe média (ou a classe média, e com ela o capitalismo), foi nos últimos 50 anos protagonista de uma mudança de costumes, de uma verdadeira revolução no âmbito das relações familiares, do exercício da sexualidade, da emancipação feminina, da afirmação dos direitos dos filhos.

Nós praticamos isso, isso está em nossas vidas, e somos simpáticos à afirmação desses direitos. Evidentemente, a homofobia continua forte, com núcleos de resistência em igrejas e na direita radical e uma resistência social difusa, provavelmente relacionada à negação fóbica de tendências homossexuais enrustidas, mas, porque a homossexualidade atravessa as classes sociais, seu reconhecimento acompanha o processo de liberação dos costumes, passando a ser aceita pela classe média ilustrada.

Já o Direito Penal segue voltado para a punição dos pobres e o Direito Civil segue voltado para a proteção da propriedade. E não falo aqui do direito positivado, que estabelece crimes e penas, que assegura a reintegração de posse: falo da nossa cabeça de juízes, juízes de classe média, que, como classe, se sentem ameaçados pelo réu do processo criminal, veem na invasão coletiva uma ameaça à propriedade que tanto prezamos. Não interessa que a Constituição tenha falado em função social da propriedade; a propriedade é vista como um direito natural, e não defendê-la significa não defender nosso apartamento, nosso carro, nossa casa na praia, nossa poupança.

E quem é esse que ameaça nossa segurança e nossa propriedade? É o outro, é o que não pertence ao nosso mundo, não é um igual, não é classe média. Com frequência, como na capa da Zero Hora, é negro. Nunca será juiz, médico, engenheiro, advogado. Nunca será rico; com muita sorte será remediado. Mas isso não nos diz respeito.

Não achei na internet a foto de capa da Zero Hora; me disseram que ZH cobra pela utilização das fotos. Nada contra, mas queria publicar logo este texto, e resolvi ilustrá-lo com um mapa da pobreza de Porto Alegre, de 2008, retirado do blog Essa metamorfose ambulante.

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Uma resposta

  1. Avatar de Stelamaris Glück Tinoco
    Stelamaris Glück Tinoco

    Reflexão potente…sim, o/a “OUTRO/A” sempre está atravessado/a por um recorte de classe. Algumas carnes valem mais ou menos do que outras…e o Judiciário não está fora ou acima desta produção social…são pessoas confeccionadas neste caldo de cultura que aprisiona estes/as outros/as em relações únicas e assimétricas..

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