A corrupção e as regras do jogo

Aloysio Nunes Ferreira quer ver Dilma sangrar. O desejo do senador do PSDB será realizado. Por uma série de motivos – polarização social, terceiro turno, crise econômica, percepção da existência de corrupção, hostilidade da grande imprensa, incapacidade de comunicação da presidente – teremos pela frente um período em que o Governo será acossado, não sairá da defensiva e terá sua legitimidade corroída.

A questão é: como isso terminará? É quase unânime o entendimento entre juristas e líderes políticos acerca da inviabilidade da ideia de impeachment, seja porque não surgiu até o momento qualquer indício acerca da responsabilidade da presidente, seja porque os oposicionistas mais sagazes veem como problemático o quadro que se desenharia em caso de impedimento.


O primeiro argumento diz com a preservação da institucionalidade democrática: o desejo de forçar a saída da presidente sem o preenchimento dos requisitos constitucionais e legais significaria uma ruptura institucional com a qual, salvo os direitistas mais raivosos, ninguém quer se comprometer.

Evidentemente, o clima que está no ar é o de algo mais forte que meros protestos, e há um desejo difuso de afastamento de Dilma, impulsionado pelo espírito de turba de uma massa radicalizada e insuflada pelos golpistas de plantão, entre os quais muitos mal arrependidos apoiadores do golpe militar.

Ouvi de um amigo que certamente estará na rua dia 15 algo como “sou a favor do impeachment porque há suspeitas de eventual crime de responsabilidade, a após as investigações pode haver o processamento e afastamento”. A fala vem de um manifestante, digamos assim, mais lúcido, mas é um exemplo claro de colocar a carroça na frente dos bois ou, como é praxe na polícia militar de muitos estados brasileiros, atirar primeiro e perguntar depois, em qualquer caso meter os pés pelas mãos.

A tendência é que, passado esse momento de catarse, e devidamente sangrada a presidente, as coisas voltem ao normal, embora dificilmente se possa esperar uma recuperação de sua popularidade. É claro que a hipótese extrema de impedimento não pode ser descartada, porque às vezes a História resolve dar piruetas, mas, considerado tudo o que se sabe das investigação da Lava Jato, inclusive pela lista de Janot, não consigo imaginar hoje essa hipótese com outro nome senão golpe.

Quanto ao motivo mais propriamente político, vou além da cautela já externada por vários líderes oposicionistas, que pragmaticamente avaliam a questão do ponto de vista das perdas e ganhos ou da difícil governabilidade. Embora neste momento toda a mobilização criada em decorrência das investigações de corrupção na Petrobrás se volte contra o Executivo, tudo indica que, em maior o menor medida, há muitos anos todos os partidos que estão ou estiveram nos governos ocuparam, pela via do tradicional loteamento de cargos, posições que permitiram, em grande escala, o recebimento de verbas ilícitas, se não para o próprio partido, ao menos para seus integrantes. Até que ponto a conduta dos partidos em si foi culposa ou dolosa é um capítulo à parte, a ser escrito.

É fundamental combater as condições que permitem a proliferação da corrupção no aparelho estatal, em particular nas casas legislativas. A lista de Janot inclui 12 senadores e 22 deputados de cinco partidos, e é apenas uma primeira amostra do muito que ainda está por vir, seja da Lava Jato, seja de outras investigações.

Independentemente das responsabilidades individuais, que ainda serão apuradas, já não há dúvida do alcance da corrupção e da existência de um grande número de parlamentares beneficiados. Trata-se de uma cultura arraigada, que não será removida por movimentos catárticos ou pela escolha de bodes expiatórios. Ou, de modo mais claro: mesmo eventual impedimento da presidente não alteraria as condições que levam à corrupção; veja-se o precedente Collor, depois do qual ficou uma ilusória sensação de depuração da República. Talvez as investigações em curso e a impressão de que já não é tão fácil roubar possam mudar procedimentos ou tornar mais modestos os objetivos, mas isso é insuficiente para desencorajar uma prática arraigada, que encontra estímulo no modo como se organiza nosso sistema eleitoral e partidário.

Listo rapidamente algumas características objetivas, que facilitam a corrupção na mesma medida em que dificultam a governabilidade. 1) o chamado presidencialismo de coalizão, em que o Executivo se vê paralisado se não consegue maioria no parlamento, o torna refém do loteamento de cargos e também de achaques, como parece ter ocorrido no mensalão; 2) essa tendência é potencializada pela facilidade de formação de novos partidos, que leva a uma crescente dispersão partidária, que, aumentando a dificuldade para formar maiorias, multiplica e potencializa as oportunidades de chantagem (em 2014, 28 partidos obtiveram representação na Câmara dos Deputados; destes, é necessária a soma dos cinco maiores para obter maioria absoluta e dos sete maiores para aprovar emenda constitucional); 3) o voto uninominal – aquele em que a pessoa estufa o peito para dizer que vota na pessoa – enfraquece as estruturas partidárias, na medida em que a eleição resulta em um Congresso anárquico, em grande parte composto por representantes de si mesmos, com significativa presença de artistas, radialistas, ex-atletas e outras celebridades; 4) a característica acima também permite a formação de partidos informais, constituídos transversalmente às listas partidárias, com a formação de bancadas super-representadas de alguns setores, como os ruralistas e os evangélicos.

Além das características acima, existe uma que merece atenção especial: o financiamento de campanha por empresas privadas, que, combinado com o voto uninominal, permite a eleição somente das campanhas caras, de quem mais conseguiu arrecadar. A grande maioria dos eleitos tem, entre seus contribuintes, empresas que, via partido ou diretamente, doaram dezenas ou até centenas de milhares de reais; a média dos valores recebidos de pessoa jurídica em 2014 é superior a 1 milhão de reais por deputado federal eleito.

Não há como imaginar que essas contribuições, sem as quais o candidato não se elegeria, sejam absolutamente inócuas para a sua posterior atividade legislativa: não existe almoço de graça.

Além disso muitas das empresas que legalmente contribuem de maneira tão generosa, são as mesmas que também participam via caixa dois ou via propina. Exemplo claro disso são as empreiteiras acusadas na Operação Lava Jato: todas elas fizeram significativas doações de campanha. O por dentro, que lastimavelmente ainda não foi abolido, e o por fora têm a mesma origem.

A contribuição de campanha por empresas está submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, já com o voto da maioria pela inconstitucionalidade, mas um pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes impede que a votação seja concluída.

A se confirmar esse verdadeiro veto informal e antirregimental, a única possibilidade de alteração da regra passa pelo próprio Congresso, o que impõe a grande questão: como quem se beneficia dessas doações decidiria pelo seu fim?

Para se chegar a tanto, seria necessária uma grande mobilização nacional e a costura de um verdadeiro pacto político entre os partidos, mas haverá alguém interessado nisso? É possível que, a partir dos protestos, haja uma catalisação que conduza a mudanças permanentes?

Resumindo: o sangramento de Dilma vai ocorrer e não é em si antidemocrático; a tentativa de impedimento é golpe; com os sem protestos, nada vai ser resolvido se não forem mudadas as regras do jogo.

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