Era 2013. Fui a uma solenidade em entidade de médicos. Nunca antes nem depois voltei a ver tantos médicos juntos. E me surpreendi com o discurso do orador principal, que logo tomou como eixo a crítica aos médicos cubanos. Havia, é claro, uma natural motivação corporativa, porque, mesmo que viessem para trabalhar onde nenhum médico nativo se dispunha a ir, ao menos em tese eles invadiriam um mercado reservado aos médicos brasileiros.
Mas o discurso, que rapidamente se inflamou, na mesma velocidade em que se tornava vermelho o rosto do orador, do mesmo modo enveredou para a desqualificação profissional, seguida da denúncia ao propósito oculto de espalhar guerrilheiros pelo Brasil. E a plateia de médicos se entusiasmava com o discurso, cujo fim apoteótico foi ovacionado em pé.
Saí de lá logo que pude, e, embora tudo tivesse me parecido patético, por muito tempo interpretei o episódio como decorrente de um misto de corporativismo profissional com conservadorismo político. Mas era mais que isso, era 2013 acontecendo na minha frente, quando nem eu nem aqueles médicos, menos eu que eles, havia compreendido o significado de 2013, que desaguaria em 2018.
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Salto para 2016. A história me foi então contada por uma pesquisadora, que fora à Unidade de Saúde da Vila Farrapos, entre outras coisas para conversar com o médico, que era cubano. Embora fosse horário de trabalho, ele não estava no consultório. Os funcionários procuraram e não o acharam. Houve um momento de perplexidade pela ausência, mas, passados poucos minutos, alguém apontou o dedo para a rua. Lá vinha ele, amparando na caminhada a paciente com hora marcada, uma velhinha diabética e hipertensa, que fora buscar em casa, a três quadras de distância.
O relato veio acompanhado de comentários sobre o excelente conceito do médico na comunidade, seu bom relacionamento com as pessoas, a atenção que dispensava aos pacientes.
Me disseram seu nome, mandei recado perguntando se poderia me receber para conversarmos. Não sei se o recado foi dado, mas a conversa não saiu e o nome, anotado numa folha solta, já se perdeu.
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Agora chego ao inevitável 2018. Os médicos cubanos, esses que só trabalhavam onde nenhum médico brasileiro aceitava trabalhar, vão embora. Não sei da guerrilha, mas desconfio que era subversivo esse seu jeito de tratar os pacientes, porque tratar bem acostuma mal. Imaginem então se os milhões de brasileiros que eram tratados por eles pensarem que é desse modo que as pessoas são tratadas em Cuba. Isso é muito perigoso!
Mas a narrativa de 2018 é diferente da de 2013. Já não se ouve que eles são maus médicos ou que são guerrilheiros, apenas que, como todos, deveriam se submeter ao Revalida. Além disso, a moda é dizer que são explorados: os mais ardorosos defensores da Reforma Trabalhista dizem isso. Também culpam aquela Ditadura Comunista por exigir a volta dos seus médicos, que antes ela havia enviado para espalhar a subversão.
Há uma ambiguidade nesse discurso. Nele está implícito que farão falta, mas a culpa por saírem é dos outros.
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O fato é que se criou um problema. Milhares de cidades brasileiras voltarão a ficar sem nenhum médico, milhões de cidadãos brasileiros voltarão a não ter acesso à medicina. Alguém se disporá a ir para o lugar dos cubanos? Será que um filho recém-formado daquela seleta plateia de 2013 se candidatará? O novo Governo exigirá que os médicos formados por universidades públicas façam estágio obrigatório nessas comunidades? E os nossos médicos brasileiros saberão tratar seus pacientes com a atenção e gentileza que lhes eram dispensadas pelos cubanos? E permanecerão no trabalho durante toda a sua jornada, ausentando-se somente para buscar o paciente em casa?
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A foto é de Osvaldo e Adela Griesang, 96 e 91 anos, 72 de casados, moradores do interior de Forquetinha, pais da Adelaide Griesang, minha amiga Dedé. Entre eles, está a médica cubana que os visitava.
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