A mãe do condenado

Existem histórias que nascem para ser contadas. Elas surgem e te interpelam, exigem ser escritas. Há outras que não, são não histórias, porque não podem ser reveladas. Faz dois anos que me deparei com uma destas. Ela me tocou, mas nunca cogitei de escrevê-la, porque havia pessoas a serem preservadas e porque me sentia ética e legalmente impedido de fazê-lo.

Como era uma não história, deixei de pensar nela logo que aconteceram os últimos capítulos do enredo, ou ao menos os mais dramáticos. Isso mudou há algumas semanas, quando me apercebi de que, embora singularmente considerados, os acontecimentos continuassem a se apresentar como uma não história, por outro motivo exigiam ser contados: algumas leituras e relatos me fizeram ver que, mesmo revelando um drama individual, os fatos de modo algum eram singulares. São, ao contrário, ilustrativos de um modo cada vez mais comum de julgar.


Por isso, se me sentia eticamente impedido de me manifestar sobre este caso individual, a descoberta de que semelhantes situações não são incomuns passou a exigir que escrevesse, e a não história se transformou na história que contarei.

 

O processo

Kauã Rocha Medeiros, mas o tratarei por Kauã. Ou K. Ele foi processado criminalmente. Processado e condenado. Também foram réus Gérson Arruda Campos e Maicon Prado Dutra, mas não tratarei deles. Resumo, em itálico, a narrativa dos fatos pela denúncia.

FATO 1 – Associação criminosa: Entre 3 e 5 de janeiro de 2015, Kauã Rocha Medeiros, Gérson Arruda Campos, Maicon Prado Dutra e mais dois indivíduos não identificados associaram-se para cometer crimes, utilizando-se de armas de fogo não apreendidas. Em 3 de janeiro roubaram o automóvel Siena, fato que deu origem a outro processo. O automóvel foi utilizado pelos denunciados para cometer o crime descrito como fato 2, roubo de um Fiesta. Em 5 de janeiro, os denunciados foram flagrados na posse do veículo Siena, momento em que o denunciado Gérson informou onde estava o automóvel Fiesta. Os denunciados foram reconhecidos pelas vítimas dos roubos.

FATO 2 – Roubo: Em 3 de janeiro de 2015, Kauã Rocha Medeiros e Maicon Prado Dutra mais dois indivíduos não identificados subtraíram, mediante grave ameaça, com o uso de armas de fogo, o automóvel Fiesta da vítima (…). Kauã chegou ao lado da vítima, anunciou o assalto e a empurrou para fora do veículo, assumindo a direção do automóvel. Maicon ingressou na carona do veículo e os acusados fugiram do local. A vítima reconheceu Kauã e Maicon como autores do roubo, conforme auto de reconhecimento do inquérito policial.

FATO 3 – Receptação: Em momento indeterminado entre 3 e 5 de janeiro de 2015, Gérson Arruda Campos adquiriu e recebeu de Cauã Wilson Rodrigues e Maicon Prado Dutra e conduziu o automóvel Fiesta pertencente à vítima (…), que sabia ser produto de crime. No dia 5 de janeiro, o denunciado e seus comparsas foram presos em flagrante na posse do automóvel Siena, também objeto de roubo anterior. Gérson estava na posse de uma chave de automóvel e, questionado pelos policiais, informou que ela pertencia a um automóvel Fiesta, também roubado. O denunciado indicou o local onde estava tal veículo, que foi localizado e apreendido.

Antes de seguir, faço uma advertência, porque talvez o leitor não tenha percebido um detalhe, fundamental no processo: o Kauã do fato 1 não é o Cauã do fato 3, e a referência genérica da denúncia ao reconhecimento dos denunciados pelas vítimas oculta que o reconhecimento de K e o de C não se confundem.
O fato é que K teve a prisão decretada ao ser recebida a denúncia, mas não foi imediatamente preso, porque o endereço nela informado não estava correto. Assim, seguiu vivendo a vida com sua família, e somente foi preso alguns meses depois, numa abordagem de rotina no trânsito, porque constava do sistema a informação que era foragido.

Como não interessa para minha narrativa, não me aterei ao andamento de processo, que não foi tão rápido quanto se espera de processos de réus presos, nem tão lento que os mantenha por anos em prisão cautelar. Assim, não perderei tempo em analisar fatos já corriqueiros, como não apresentação pela SUSEPE dos réus presos para assistirem às audiências, manutenção de algemas por periculosidade presumida, nomeação de advogados dativos para alguns atos, denegações de habeas corpus.

Há ainda outro detalhe, mais relevante para a história: embora a pessoa presa em flagrante com os demais acusados que estavam no Siena fosse Cauã, na transcrição da audiência de instrução, todas as perguntas e respostas em que pronunciado o nome com fonema kawˈɐ̃ foram transcritas como Kauã, e não como Cauã.
No mais, deixo de lado a instrução para chegar à sentença, na qual, como já anunciei, fixo-me em K.

A sentença iniciou rejeitando alegações de nulidade, entre as quais a de que K somente foi reconhecido por fotografia na fase policial, seguiu analisando a materialidade e depois a autoria, ponto que aqui interessa analisar.

Ao sustentar a possibilidade de utilizar como prova o reconhecimento fotográfico realizado na polícia, afirmou, citando o Código de Processo Penal, que o inquérito é peça informativa e que o magistrado não pode se valer exclusivamente dele para condenar, devendo, por isso, cotejá-lo com a prova colhida judicialmente, sob o crivo do contraditório. Em outras palavras: o reconhecimento fotográfico na delegacia vale, desde que outras provas se somem a ele.

Ao leitor que chegou a esse ponto cabe, portanto, aguardar essas provas judiciais, suficientes para condenar.

Seguiu a sentença afirmando que, principalmente em relação a Maicon e Gérson, foi seguro o depoimento dos policiais que abordaram o veículo em que estavam os acusados. Nada esclareceu sobre a função semântica do “principalmente” e do “acusados”, e não é possível concluir se “principalmente Maicon e Gérson” exclui K ou significa secundariamente K, nem se sabe se, como os policiais depuseram sobre a prisão em flagrante, nesse contexto a sentença considera mesmo assim reconhecido K, que não estava lá.

Em seguida, afirmou que a participação de Gérson se comprovou pelo fato de que estava com a chave do Fiesta e que a narrativa dos acusados não encontrou eco no restante da prova produzida, não havendo motivo para supor que os policiais, cujos depoimentos foram coerentes e harmônicos, pudessem lhes imputar gratuitamente delito tão grave, deixando livres os verdadeiros autores. Se o leitor está familiarizado com sentenças penais, não há de estranhar o valor quase absoluto dado ao depoimento de policiais, mas isso é secundário ao ponto, que é saber que foi identificado.

Embora preocupante a análise, porque sabido que quem estava no carro era C, e não K, no momento seguinte a sentença pareceu marcar a existência de duas pessoas, porque aparece nela a referência à possibilidade de K ter sido confundido com outra pessoa. Contudo, a mesma frase que inicia aventando essa possibilidade encerra dizendo que será afastada.

Apresentou, então, os argumentos que selaram a sorte de K. Primeiro, reconhecendo que não era K, mas um homófono, que estava no carro, afirmou que isso não é suficiente para afastar sua responsabilidade, porque foi reconhecido por foto na delegacia. Depois, acrescentou que o fato de existir mais uma pessoa com o mesmo nome envolvido na ocorrência não significa necessariamente que houve confusão, mas evidencia que são muitos os criminosos que agem na região.

E os argumentos seguiram: K está sendo processado criminalmente por outro fato, o que depõe contra ele (fui pesquisar agora: este outro processo, usado como argumento para sua condenação, e cuja existência há de ter sido fundamental para que a polícia mostrasse justamente sua foto à vítima, foi sentenciado meses depois, e K foi absolvido). Acrescentou que, se a defesa tivesse interesse, teria postulado, no momento oportuno, o reconhecimento do acusado (lembre-se que esta mesma sentença que censura a defesa por não ter postulado o reconhecimento afirmou não ter havido prejuízo na nomeação de defensor para o ato).

Por fim, referiu que a defesa foi incapaz de produzir um álibi para o dia do roubo. Nesse ponto, há uma aparente incongruência: sem ao menos ter promovido o reconhecimento em audiência e justificando pelo decurso de mais de um ano a provável impossibilidade de a vítima reconhecer K, a sentença censura sua defesa por não ter, após este mesmo tempo, comprovado que estava em outro lugar no dia do fato. No entanto, parece bem mais fácil a vítima reconhecer um assaltante depois de um ano que um inocente lembrar – e provar – onde estava num dia qualquer de um ano atrás. O leitor poderá, por exemplo, provar onde estava às oito da noite de 1º de setembro de 2017, caso venha a ser acusado de ter cometido um crime nesse dia e horário?

Assim, após afirmar que o reconhecimento por fotografia na delegacia é válido, mas precisa ser acrescido de provas judiciais, a sentença colheu os seguintes argumentos contra K: 1) depoimento dos policiais, que, no entanto, prenderam C e nada falaram de K; 2) a intensa criminalidade na região, que torna possível haver dois criminosos homófonos; 3) o fato de que K é réu em outro processo (com posterior absolvição); 4) a omissão da defesa, que não pediu o reconhecimento judicial; 5) o insucesso da defesa em provar onde K estava no momento do fato.

Esqueceu a sentença de referir na análise que os demais acusados, que fizeram várias referências a sua relação com C, afirmaram não conhecerem K. Contudo, nessa estranha lógica, se o tivesse feito, provavelmente teria concluído tratar-se de mais um argumento a favor da condenação, porque apenas demonstrava que os réus protegiam seu cúmplice.

Após esse relato, e porque me interessava mostrar a análise da prova sobre a participação de K, sem maiores considerações sobre os demais aspectos do processo, apenas acrescento que a sentença considerou comprovada a associação criminosa e condenou K e Maicon pelos fatos 1 e 2 e Gérson pelos fatos 1 e 3. Pela associação criminosa, mais roubo com majorantes uso de arma e concurso de agentes, considerada ainda a presença de antecedentes (lembre-se do processo em andamento, que terminou em absolvição) e circunstâncias desfavoráveis, K recebeu pena de total de aproximadamente nove anos de reclusão.

Todos os réus apelaram, e o Ministério Público de Primeiro Grau manifestou-se pela manutenção da sentença; chegando os autos ao Tribunal de Justiça, o parecer do Ministério Público foi pela absolvição de K, porque não juntada a fotografia do reconhecimento policial.

No acórdão, depois de também rejeitar as preliminares, o relator afastou o argumento do Ministério Público, dizendo que a fotografia estava nos autos. Depois, ao analisar a autoria, lembrou o reconhecimento feito na fase policial e, analisando a prova judicial, ignorou a existência de homófonos e considerou comprovada a participação de K, porque, segundo os depoimentos dos policiais e mais uma testemunha, estava no veículo quando houve a prisão em flagrante (contudo, como sabe o leitor, e mesmo que nos depoimentos conste K, quem estava no veículo era C). Com base nessa análise, afastou os argumentos da defesa, segundo a qual não havia prova da sua participação.

Por outro lado, afirmou não estar comprovada a associação criminosa, afastou as ponderações negativas das circunstâncias judiciais e dos antecedentes, reduzindo a pena para cinco anos e seis meses de reclusão, decisão que se tornou definitiva.
Este o processo em que foi condenado K.

 

A mãe

A chamarei de Anna. Eu havia escrito Arrependimentos, texto no qual fiz referência a três sentenças condenatórias por mim proferidas, dizendo que delas me arrependo. Ela leu e me mandou esta mensagem: “Bom dia. Acho que eu sou só mais uma mãe desesperada. Lendo sua postagem, senti uma dor enorme, pois tenho um filho preso há dez meses. Foi preso como foragido de um processo que não sabíamos que estava correndo, não teve nem direito a defesa. Hoje luto com todas as chances que tenho, mas não tenho sucesso. A juíza alega um reconhecimento por foto, tal foto de quando ele tinha 15 anos, hoje com 21. Reconhecimento feito pela vítima quatro dias depois do fato. Não tenho mais forças. A dor maior é a transformação que meu filho tá vivendo. Nunca foi um playboy, mas sei que, com a decisão de uma juíza, eu não tenho chances. Desculpa o desabafo.”

Não foi a única pessoa que, após aquele texto, me remeteu semelhante mensagem: houve uma menina de 16 anos cujo companheiro havia sido preso preventivamente e ela não sabia o que fazer; houve uma mulher que ficou presa preventivamente por nove meses, afastada de suas filhas pequenas, para ao final ser absolvida.

Eu não sabia bem como agir diante dessas mensagens, e optei por respostas entre polidas e vagas, com empatia suficiente para não parecer insensível e afastamento prudente para evitar envolvimentos que poderiam não ser eticamente adequados. Para a primeira, sugeri que procurasse a Defensoria Pública; para a segunda, pedi desculpas, disse que sempre há o risco de semelhantes coisas acontecerem e desejei boa sorte.

A postura bastou para encerrar no nascedouro essas conversas, mas Anna, para a qual eu perguntara se o filho tinha defesa, ao final lhe desejando boa sorte, voltou a falar comigo após quatro dias: “Bom dia. Cheguei ao meu limite, não tenho mais forças. Hoje fiquei sabendo que ele começou a usar drogas. Agora não tenho mais forças, sou sozinha nesta luta. Desculpa o desabafo, não tinha com quem falar. Obrigado por ter me ouvido.”

A partir de então, passei a receber regularmente suas mensagens. Dias depois, me disse isso:Várias vezes pensei em tornar público meu sofrimento. Hoje, durante a visita, ele chorou muito e me pediu perdão pelo que está fazendo. Disse que está sem esperança lá dentro. Durante o mês de setembro tem os desfiles de cavalo, dos quais ele sempre participou, pois foi criado com as lidas do campo, e hoje ele falou que não vai estar aqui para participar.”

Continuei sem saber como agir. O que me tornava destinatário das aflições de Anna? Teria ela a esperança de que eu a ajudasse? Ou esperava apenas desabafar com alguém que escrevera sobre seus próprios erros que levaram a condenações? De qualquer maneira, estava claro que, se é tão difícil falar com juízes, ela obtivera algum conforto em, ao menos virtualmente, ter obtido a atenção de um, mesmo que ele não pudesse ajudá-la de outro modo.

Um dia perguntou se havia como falar com a juíza, e eu não soube responder. Outro dia, perguntou se cabia um habeas corpus para o STF, e sugeri que falasse com seu advogado.

Passado mais um tempo, disse que gostaria de também poder escrever: “Tenho vários relatos do que acontece lá dentro e gostaria de compartilhar isto com o mundo aqui fora. Não sei se devo. Não seria uma denúncia, seria mostrar um mundo diferente, um mundo em que muitos não acreditam, que é assim um lugar que não melhora ninguém, pelo contrário, lá todos perdem a inocência que ainda lhes resta.”

Quando o processo aguardava julgamento, quis me remeter as alegações finais da defesa, para que as analisasse, e eu disse que não o fizesse, porque estava legalmente impedido de me envolver.

Dias depois, lamentei que aquela fosse a única resposta possível, quando li “Minha luta foi em vão, meu filho foi condenado.” me ocorreu responder que a luta de uma mãe nunca acaba e que era necessário que ela tivesse forças para continuar. E veio o desabafo:Tenho medo do que ele vai fazer lá dentro. Tudo lá é sob pressão, tudo tem um preço. Uma simples troca de nome, e estragou a vida de uma pessoa.”

Tentei consolá-la, dizendo que logo haveria direito a progressão, e ela respondeu não saber o que era isso. Perguntou se eu podia lhe explicar algumas coisas, eu disse que sim, mas não dar conselhos jurídicos ou comentar a sentença.

Passou um mês sem que me chamasse, quando veio esta mensagem: Hoje foi um dia triste, fiquei sabendo que será mais um Natal sem ele aqui comigo. Dizem que é sem chance de ele sair antes do final do ano.”

Mais quatro meses, e escreveu, animada, para dizer que o pesadelo estava perto de acabar, porque em maio completaria um sexto da pena. Chegou maio, e nada se resolveu, o pesadelo continuava. Anna disse sentir que será tarde.

Dias depois, mandou cópia de um despacho, no qual o juiz dava prazo para a conclusão da avaliação psicossocial, e perguntou se a solução estava próxima. Outros tantos dias, e disse estranhar que levaram o filho para nova avaliação, após já terem feito a primeira.

Depois, ainda uma vez, me deixou sem resposta: “No outro processo que ele respondia, pelo qual começou toda esta confusão, ele foi absolvido. A juíza condenou ele neste, baseado no outro, só que agora ele foi absolvido no outro.” Parecia, numa lógica irrefutável, dizer que, se seu filho foi condenado porque era réu em outro processo, a absolvição neste impunha que também lá a sentença fosse mudada.

Assim foram se seguindo as mensagens. A cada alteração nas informações sobre o andamento do processo, me perguntava o significado daquilo, e eu respondia, lacônico: agora deve ir para o MP, depois o juiz decide, etc.

No início de junho, veio a notícia da progressão para o semiaberto e da soltura, por falta de vagas em estabelecimentos adequados a esse regime, mediante o uso de tornozeleira.

Em julho, mais uma notícia: “Boa noite. Aqui tudo mais tranquilo, a pena do meu filho caiu de nove para cinco anos, está com tornozeleira, trabalhando e vai voltar a estudar.”

Passaram os meses, passou o ano, e não voltamos a conversar. Em 8 de março, li texto do Paulo Irion, e mandei para ela: “Sim, no dia das mulheres, vou homenagear aquela senhora, com idade aparente de 50 anos, que agora de tarde foi chamada até a VEC de Porto Alegre porque seu filho, ainda jovem, beirando os 30 anos, fora preso, ao ser atendido no balcão, por ordem do Juiz. O Juiz sou eu. Fui eu que assinei o mandado de prisão e hoje executei a prisão. Triste, muito triste ver as lágrimas daquela mãe sofrida. Mas o porquê de sua prisão? Este jovem – que no passado esteve no mundo das drogas – possuía uma condenação, com pena extinta pelo indulto. Agora, por fato antigo, praticamente contemporâneo ao primeiro, recebe nova condenação, no momento em que estava com sua vida reorganizada, sendo proprietário de uma oficina de consertos de … e frequentando o … semestre de uma faculdade, tudo comprovado pelos documentos trazidos pelas mãos trêmulas da mãe. Em grau de apelação, dois desembargadores o condenaram a uma pena de em torno de 5 anos, em regime inicial fechado. O terceiro desembargador o condenou em 3 anos e poucos meses, em regime inicial semiaberto. Interpostos os embargos infringentes, os votos vencedores foram mantidos, resultando na condenação de em torno de 5 anos no inicial fechado. O jovem hoje preso por minha ordem já tinha estado ontem para se apresentar e dar início ao cumprimento de sua pena, porém o expediente terminou antes do seu atendimento e seu carro iria ficar preso no estacionamento. Foi embora. Hoje retornou. Detalhe, com péssima orientação jurídica, pois lhe foi dito que ganhara os embargos infringentes e, por consequência, como o regime seria o semiaberto iria colocar a tornozeleira eletrônica, por falta de vagas. Não foi o que aconteceu. Foi preso. Como Juiz cumpro as decisões superiores. Diante do quadro, que o surpreendeu, determinei que chamassem sua mãe para a retirada do veículo no estacionamento e ficasse com os pertences pessoais do jovem e tivesse um contato com ele. Depois de meu assessor conversar com outra colega, conseguimos uma vaga em unidade prisional com redução de danos. A mãe – esta que chorando ouviu-me com tolerância e compreensão – perguntou-me que faria com os aparelhos pendentes de conserto e o que seria da faculdade do filho. Ao final disse-me, com a dor e o sofrimento materno e com choro forte: não sei se vou aguentar, quando lhe disse que seu filho precisa que ela aguente. É claro que ela vai aguentar, pois o amor de mãe tudo suporta. Repassei-lhe algumas informações e orientações, com o que foi se acalmando, culminando por me agradecer. Ao despedir-me não tive coragem de parabenizá-la pelo dia da mulher. Porém o faço agora, como forma de homenagear todas as mulheres no seu dia, em especial estas que sofrem com o aprisionamento de seus filhos e filhas, e que somente o amor materno faz ultrapassar os constrangimentos, sofrimentos e barreiras derivadas da prisão.”

Ao receber a mensagem, Anna reconheceu o amor da mãe, outra mãe como ela, cujo sofrimento era o mesmo dela. E me comunicou, feliz, que, com a redução da pena, a tornozeleira será retirada.

Em 18 de maio, me chamou novamente, pedindo ajuda, porque ainda não haviam tirado a tornozeleira. O problema estava em que faltava um papel do Presídio Central onde constasse o comportamento do filho. Respondi lamentando a demora da burocracia, e mais uma vez dizendo que não podia ajudar, e que isso é competência do juiz da execução da pena. Ela ainda disse que desde janeiro aguardava a retirada, e ela nunca acontecia.
Finalmente, em 5 de junho saiu o livramento condicional e a retirada da tornozeleira. Anna era uma mãe feliz.
Depois desta última notícia, não mais nos falamos.

Era uma não história, e não pretendia escrever sobre o processo de K ou sobre a luta de Anna: ainda mais do que ao início, quando não sabia se devia lhe responder, entendia que qualquer comentário público sobre o que aconteceu poderia representar falta de ética e, mais que isso, uma infração aos deveres da magistratura.
Foi há pouco que me convenci de que este processo, do qual tive conhecimento pela singular circunstância de ser procurado por uma mãe aflita após ter, eu próprio, falado de condenações de que me arrependo, representa muito mais do que o processo de K ou a saga de Anna, porque ilustra algo de muito grave que acontece em muitos processos penais. Fosse somente um processo, estaria naquela quota de erros que ocorrem em qualquer profissão, porque somos humanos, e nesse caso não me seria lícito fazer a crítica. Mas não é, e porque o processo de K é apenas um entre tantos semelhantes, é minha obrigação falar dele.

Tomei a decisão de escrever após encontrar um amigo Procurador de Justiça e ouvir dele, pronunciada com tristeza, a sua constatação de que aquela antiga lição, segundo a qual é preferível um culpado solto que um inocente preso, foi definitivamente substituída pela valoração em sentido contrário, baseada na convicção de que um inocente preso não nos causa mal, mas um culpado solto é sempre perigoso.

Essa subversão de um princípio jurídico tão caro, como o da presunção de inocência, pode vir por meio da adoção de teorias estranhas e rasteiras, que elevam a um status teórico torto a possibilidade de condenar sem provas, ou, como é mais comum mas não menos rasteiro, por análises superficiais do processo, em que a indisfarçada vontade de condenar permite, por meio de um malabarismo argumentativo, dizer culpado o réu quando faltam provas mínimas para a condenação.
Não sei se K era ou não culpado, nem ao menos li o processo, e me amparei somente nas peças processuais a que tive acesso pela internet, mas basta a leitura da sentença para compreender o que aconteceu.

Por que acontece? A questão não pode ser respondida no âmbito da teoria jurídica, até porque parece não haver no plano teórico algo que justifique semelhantes julgamentos. É claro que, cada vez mais, fato visto em recentes julgamentos de grande repercussão com interferência na política, constroem-se argumentos indutivos, muitas vezes justificados na excepcionalidade ou na alegada dificuldade na obtenção da prova em crimes complexos, em que tudo passa a ser prova.

Isso acontece, justificado com o argumento da excepcionalidade, no âmbito de processos mais visíveis, como os que interferem gravemente na vida política nacional, mas também acontece corriqueiramente na arraia-miúda dos processos penais, sem merecer nenhuma atenção. Por esse viés, a falácia argumentativa inverte qualquer raciocínio lógico, como quando, se foi preso C e não K, tal fato mesmo assim reforça os argumentos condenatórios contra K, a partir da afirmação de que, sendo muitos os criminosos que atuam na região, podem perfeitamente existir dois com nome semelhante.

Mas, se afirmo que a questão não se explica do ponto de vista da teoria jurídica – a não ser que se o faça por distorções grotescas –, considero muito plausível explicar a questão a partir do lugar ideológico do julgador. E este lugar já não é o mesmo de antes.

Seria um truísmo dizer que o Judiciário é conservador. Sempre foi e continuará a sê-lo. Mas o conservador de ontem não é o conservador de hoje. Alguma coisa mudou, e não foi para melhor. Antes havia a aplicação conservadora de uma lei conservadora; hoje, cada vez mais se ignoram ou se relativizam as limitações de um arcabouço jurídico que, mesmo conservador, foi montado no contexto de um Estado liberal, no qual ao menos em tese se assegura a proteção dos direitos individuais, para se enterrar diariamente o secular princípio in dubio pro reo.

Evidentemente, ninguém admitirá que assim age, embora abundem exemplos de que, sob um discurso em que os direitos são preservados, se condena, se condena, se condena. E se condena sem provas, dizendo que as provas estão aí.

Renderia outro texto a discussão sobre o que causa semelhante fenômeno. Evidentemente, não se pode ignorar a existência de um sistema, amparado na pressão midiática, construído para prender, numa prática que se aprofunda com o processo de exclusão social da última fase do capitalismo, o que acontece sem nenhum ganho social – basta lembrar que, quanto mais se prende, e o número de presos passou de 90 mil em 1990 para o número estimado de 840 mil em 2018, maior tem sido a criminalidade e a sensação de insegurança –, mesmo porque a finalidade do sistema não é a de reduzir a criminalidade.

Mas, se há um sistema feito para prender mais e mais, para que funcione, ele necessita de seus agentes: uma máquina só funciona porque há quem a opere, e para melhor operá-la precisa acreditar no que faz.

A vontade de prender não é racional, assim como não é racional o alívio com a prisão. Nenhum condenador admitirá que distorce a prova ou que fica feliz ao prender. Mesmo assim, age como um vingador moral, que se sente realizado com o resultado positivo de sua jurisdição, expressa no número de condenações, e não vê o réu como um semelhante que mereça empatia.

Há, nessa vontade de prender, de um lado, a insensibilidade social em relação ao réu, inimigo culpado pela insegurança que o condenador sente quando o rádio fala com estardalhaço do último latrocínio, e há nela a satisfação de ocupar esse lugar de vingador social, que se realiza profissionalmente com a ilusão de que, quanto mais prender, mais útil será para essa sociedade amedrontada.

O que importa nisso tudo é tirar de circulação quem pode nos oferecer perigo. Se ocasionalmente isso levar a prender um inocente, paciência, são os ossos do ofício. De qualquer maneira, nem nesse caso terá maiores aflições, porque os condenadores estão anestesiados para o sofrimento dos condenados.

Três observações finais: 1) para escrever o texto, obtive a autorização de K e Anna; 2) alterei dados que pudessem levar à identificação do processo ou das pessoas envolvidas; 3) a identificação do fenômeno do juiz condenador não pode se fazer sem a declaração de admiração aos inúmeros juízes que, mais brandos ou mais severos, continuam a analisar o processo e respeitar o princípio da presunção de inocência. A foto que ilustra o texto é de autoria de Sidinei Brzuska, e mostra mulheres na fila para serem revistadas no Presídio Central.

 

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