O centenário foi em julho, perdi a efeméride. Até perguntei no dia dos cem anos quem matou Marielle. Também podia ter perguntado quem matou Amarildo, porque isso foi há cinco anos. Talvez o enfoque rendesse um texto, associando Mandela ao apartheid brasileiro, mas os dias passaram e ele não veio.
Mesmo sem texto, um outro pensamento passou a me perseguir, e foi o do Mandela preso político. Nada há de inusitado em lembrar disso, afinal, foi nos seus anos de prisão que ele se tornou um símbolo mundial da luta contra a perversidade de um Estado segregacionista, da luta de uma maioria negra e pobre, oprimida pela elite branca descendente dos colonizadores europeus.
Meu pensamento foi: Mandela teria sido Mandela se não tivesse sido preso? Teria se tornado esse mito que hoje conhecemos? O regime de apartheid teria sido derrubado sem a construção, no imaginário coletivo, desse ícone da resistência, preso por ser contra a opressão?
Cheguei a pensar que, do ponto de vista da análise histórica, a dúvida é irrelevante, do mesmo modo como foi a cogitação sobre a imprevisibilidade dos acontecimentos, que atribuiu ao tamanho do nariz de Cleópatra um papel fundamental para o futuro dos romanos e, em decorrência, da civilização ocidental.
Mas a comparação não serve, porque a prisão de Mandela não foi um acaso. Havia na África do Sul de então um fermento de revolta contra a opressão econômica e racial, de um regime que sobrevivia, contra toda a pressão internacional, porque sustentado pelos Estados Unidos, que, antes de se verem eles próprios obrigados a abolir a legislação segregacionista, também chegaram a encarcerar Luther King.
Os tempos eram outros, e a luta por direitos civis podia ser bem sucedida, porque havia uma pressão por igualdade, num contexto mundial de fortalecimento das lutas democráticas (não na América Latina, quintal americano, mantido sob controle com ditaduras militares).
Podia ser uma questão de tempo, mas um dia o apartheid cairia. E Mandela preso tinha a força simbólica da sufocação de uma ideia de liberdade e igualdade. Foi o que o transformou em mito, em uma ideia, e deu combustível para a causa.
É claro que a um historiador a prisão de Mandela, e com ela a criação do mito, é fato de menor relevância: para ele é fundamental entender como funcionava a geopolítica na África nos tempos de Guerra Fria, os respingos das guerras anticoloniais das nações vizinhas sobre a África do Sul, a pressão internacional contra a segregação, o fortalecimento interno da organização e reivindicações dos negros.
Por outro lado, toda a luta necessita de seus mitos, e lutar contra a opressão tendo seu líder preso injustamente foi, com certeza, uma inspiração à militância do Congresso Nacional Africano, um combustível para a sua luta.
Mais dia menos dia haveria de cair a opressão do apartheid, mas a luta se reforçou com Mandela preso. E foi sua prisão que criou o mito Mandela.
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