Sexta-feira, seis horas. Desço a madrugada fria da Plínio, sigo pela Avenida dos Industriários, passo pelo Alim Pedro e o contorno. Não é meu hábito, mas o Brasil e Costa Rica atrapalha a rotina e o despertar antecipado me deu a ideia. Há mais de trinta anos, desde os tempos de panfletar em fábricas, não respirava o ar frio da manhã escura.
A ideia é caminhar até o sol nascer, uma hora e meia, que começa com o susto do cão vadio – o dele e o meu, mas é ele que se afasta do meu caminho. Somos só nós dois no parque. Nós e os sabiás, que a essa hora já revolvem o chão, silenciosos como são no inverno.
Calculo que serão oito voltas no meu roteiro de 900 metros, sentido anti-horário, contornando o Alim Pedro por trás e voltando pela trilha do meio.
É bem iluminado, e vejo duas placas “bergamoteira” identificando as mudas plantadas por um vizinho. Sigo caminho, sem saber se é seguro sair a essa hora. Enquanto volto por dentro do parque, penso nas queixas femininas sobre as coisas que lhes são vedadas pela falta de segurança, entre elas certamente passear por um lugar ermo de madrugada, mas, ao iniciar a segunda volta, antes de chegar ao Largo Elis Regina, vejo a mulher que passa a chave na porta, arrumada para o trabalho. Nossos olhares se encontram rapidamente, ela parece me evitar e toma a viela lateral para a parada do ônibus.
Mais duzentos metros e outro encontro. Perto do armazém onde aos sábados se organizam rodas de pagode, pouco acima do santuário em cujo altar há alguns dias uma esquizofrênica invocava seus santos, um homem negro atravessa a rua em minha direção. Está pobremente vestido e tento adivinhar o que é aquilo que leva à cintura. Ele: IAPI! Eu: Hein? Ele, de novo: IAPI! Eu: Ônibus? Ele: Postão, Postão do IAPI! Digo para ele subir a escadaria e seguir em frente por duas quadras. Retomo o caminho sorrindo. Sempre sorrio quando me pedem uma informação e consigo responder.
Mais uma volta. Enquanto, no chão, os sabiás – são muitos – seguem sua refeição, os joões-de-barro começam a saudação matinal sobre os galhos. Vejo luzes acesas em alguns apartamentos. Passou o frio das mãos.
Sinto, às vezes, estalos sob meus passos. Acho que são sementes. Não as de tipuana, que se concentram em grande número sob as enormes árvores, nem as de orelha de macaco, que descobri ser timbaúva, e recolhi para plantar; talvez as de aroeira.
Na volta seguinte, a primeira companhia humana: vejo ao longe, na pista atlética, a caminhada firme de um sexagenário.
Aos poucos, vem a luz natural, já não se veem estrelas, mas as lâmpadas seguem fazendo sombra forte.
Outra volta, e passo pela primeira cachorreira, que me dá bom dia enquanto os cães latem. Bem depois dos joões-de-barro, agora os papagaios, que vêm em revoada, fazem alarido ainda maior. Olho para cima. Com dificuldade, diviso alguns nos topos das árvores. Nos galhos de baixo, algumas rolas sonolentas.
Nuvens amarelas no céu, mas ainda lusco-fusco, começam a parar carros na frente da Escola Cenáculo. Uns estacionam, outros só dão tempo de descer o passageiro com mochila e seguem caminho. Adultos formam grupinhos na calçada, as crianças entram no colégio.
Agora o primeiro atleta a chegar na pista corre e vários outros fazem sua caminhada. No campo, quero-queros silenciosos observam.
O horizonte já está vermelho, abrem-se portas, saem pessoas, passam carros. Penso no melhor lugar para ver o sol nascer, calculo que será em duas voltas mais. Agora um atleta que preferiu não ir à pista, para ficar na trilha, sobe e desce correndo as escadas. Vários cães e seus donos passam por mim. Alguns donos dão bom dia, outros falam com os cães.
Última volta. Antes mesmo de ver o sol, enxergo a luz laranja projetada no muro. Paro ao lado de um eucalipto e faço um alongamento desajeitado, olhos fixo no oriente.
Subo pela mesma escadaria que indiquei há uma hora e caminho em direção ao Postão. Passo pelas árvores com vagens secas de onde há alguns dias retirei sementes. Ainda não sei se são de angico, como desejo.
Dobro na Marechal José Inácio. O mesmo guardador de sempre, também negro, se exaspera com o motorista que se recusou a estacionar na excelente vaga que ofereceu. Ainda reclamando, repara em mim e, pela primeira vez desde que faço esse trajeto, me cumprimenta.
Sigo meu caminho de volta, pensando que às vezes sou quase feliz.
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A foto, que recolhi da internet, é diurna. No primeiro plano está o Largo Elis Regina, à direita o Alim Pedro.
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