A flor do jardim

Houve, nas reações ao fechamento antecipado da exposição Queermuseu, uma que me preocupou mais do que o obscurantismo conservador de sempre e o novo fascismo do MBL: a das muitas pessoas verdadeiramente democráticas que, sem se sentirem encorajadas a explicitamente defender a censura, levaram seu discurso para o mal estar diante de algumas obras que consideraram ofensivas.

Não que o assanhamento do fascismo não preocupe: preocupa e muito, mas este está no seu script. Já aos democratas que levam a discussão para o mérito do que está exposto escapa a questão fundamental da liberdade de expressão.

O cristão que admira o papa Francisco mas se sentiu ofendido, a mãe que achou que o filho não deveria ter sido exposto àquele quadro, a professora que entendeu ter havido manifestações pedófilas, todos são pessoas que pensam. Muitas delas chamam o impeachment de golpe e conhecem o risco do aquecimento global, mas nesse ponto se sentiram desconfortáveis, reticentes. São pessoas que não correram a defender a manutenção da exposição ou denunciar as trevas, porque tomadas pela perplexidade.

Eu não havia ido à exposição e confesso que, distraidamente, ignorava sua existência. Tomei conhecimento dos trabalhos expostos depois que o escândalo estava armado, e talvez em relação a um ou outro deles pudesse também compartilhar algum desconforto, mas a questão não é essa.

Podíamos discutir se criança viada nos ofende ou não, também podíamos refletir e ver se nos provoca a algum pensamento mais crítico, mesmo porque sabemos que a arte muitas vezes nos interpela por meio do desconforto. Podíamos até mesmo dizer, como houve quem dissesse, que nada disso é arte. Mas não é esta a questão.

A questão é saber se defendemos a livre expressão ou não. É saber se pode ou não haver livre expressão do pensamento. Claro, talvez, como alguns disseram, caiba uma discussão sobre os limites dessa liberdade: saber por que pode expor esse quadro e não pode fazer apologia do nazismo. Para isso, talvez seja interessante discutir o que exclui e o que inclui, o que mata e o que resgata, o que odeia e o que ama. E ser tolerante, exceto com os intolerantes.

Mas o fundamental é lembrar Voltaire, naquela sua célebre frase sobre o direito de manifestação: você pode discordar, mas não pode proibir; pode sair desapontado da exposição, mas não se alinhar ao obscurantismo. Essa é a questão.

E há mais uma: é a da flor que arrancam do nosso jardim. Não pensemos nunca que arrancam inço: o jardim é nosso, cada um de nós decide o que é inço e temos que gritar enquanto não arrancam a voz que há em nossa garganta.

Leia No caminho com Maiakóvski. Leia também o artigo Arte e censura de Rute dos Santos Rossato, em Disputando o Direito.

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