Prender para emancipar

Quem se masturba e ejacula em uma mulher num ônibus deve ser preso preventivamente? Pelas muitas manifestações iradas que tenho lido, sim.
De fato, o gesto é de uma violência simbólica extraordinária, e, ressalvada a muito provável hipótese de que quem cometeu o ato foi uma pessoa enferma, autoriza a repulsa social na mesma medida da ofensa.
E o fato de que tenha ocorrido num momento em que tantos se empenham em tornar efetivo o discurso de igualdade e de rejeição ao sexismo explica o repúdio e a denúncia aos abusos cometidos contra a mulher. Não só a mulher singular, que estava sentada no ônibus; a mulher plural, como gênero.
Talvez justamente pelo tamanho da violência simbólica, ocorrem reações na mesma proporção, com a perda de lucidez própria das grandes paixões. Então, com todo o alarde, acusa-se de misógino o juiz que pôs o acusado em liberdade.
Não é uma acusação amparada em argumentos jurídicos, e é feita apesar de ele ter escrito em sua decisão que houve grave violação à dignidade sexual das mulheres. O fato é que mandou soltar quem, pelo tamanho da ofensa, não deveria ter soltado. Nesse caso, é irrelevante que a ação praticada não tenha nenhuma aparência de estupro e provavelmente não passe mesmo de contravenção penal, como consta da decisão; interessa que se exige uma imediata reparação, neste caso não menos que a prisão. Não interessa saber se houve ou não crime, se estão ou não presentes os requisitos que autorizam a prisão preventiva; isso são detalhes negligenciáveis neste mundo guiado pelo maniqueísmo.
Somos portadores de almas punitivistas e exigimos savonarolas que sumariamente condenem e executem aqueles que ofendem nossa visão de justiça. Se não o fizerem, só nos restará sermos nós próprios os savonarolas do tribunal virtual, e nossa primeira execução será a do juiz complacente que não cumpriu seu dever de atender a nossa ira santa.
Talvez seja mesmo inevitável esse tipo de reação nas redes sociais, que, como sabemos, se tornaram instrumentos para extravasar nossa irracionalidade, muito antes que locais de debates racionais, e nesse caso a atitude mais compatível com a revolta diante do tamanho da agressão seja a de buscar uma reparação moral, que simbolicamente esteja à altura. O que menos interessa é saber se juridicamente cabia a prisão; interessa a retorsão na mesma medida e, quando ela não nos satisfaz, nossa frustração se transforma em revolta contra a autoridade que consideramos complacente.
Mas a questão vai além de uma mera escaramuça inócua na internet: vai no papel que mesmo pessoas democráticas paradoxalmente atribuem ao Direito Penal, de quem esperam a espada punitiva contra quem ofende seus desejos libertários.
Há alguns anos fui convidado a assinar abaixo-assinado de apoio a um Projeto de Lei que criminalizava a homofobia. Prontamente assinei. Logo em seguida, o mesmo convite foi feito a outra pessoa, com longa militância em Direitos Humanos e evidente simpatia pela causa das minorias, que se recusou a assinar. Seu argumento foi singelo: o Direito Penal já servia para punir demais e não concordava que ele servisse como instrumento de coerção para apoiar lutas emancipatórias.
Talvez seja esta a questão. De savonarolas, nem sempre tão sinceros quanto o original, o Brasil já está cheio. E não precisamos ajudá-los nos muitos estragos que nos causam.
Não precisava, mas termino como comecei: o ato em si é de uma violência simbólica extraordinária, e merece todo nosso repúdio.

Publiquei ontem este texto, e hoje a discussão continua em alta voltagem. Talvez nunca antes tenha ficado tão tentado a fazer uma edição completa de um escrito, acrescentando novos argumentos, retificando alguma coisa, pesquisando sobre os personagens (por exemplo, investigar se o acusado é inimputável), e por aí vai, mas isso exigiria tempo e não alteraria no fundamental o pensamento.
Apenas acrescento que, ao ver a continuação do debate público, me dou conta de que esse fato configura uma daquelas situações-limite no campo dos debates éticos, e a partir dele a conversa pode ser desdobrada para muitos campos.
E me dou conta de que a busca gramsciana do equilíbrio entre vontade e razão, otimismo e pessimismo, é fundamental para a manutenção da lucidez.
Concluindo: o argumento ad terrorem “queria ver se fosse com tua filha” sempre foi usado pela mais tosca direita punitiva; me sinto mal quando vem de gente com cujas posições comungo no fundamental.

A ilustração é de A criação de Deus, de Harmonia Rosales.

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