Para mim está claro: este Executivo e este Legislativo não têm legitimidade política para aprovar qualquer medida de restrição de direitos, porque foram cúmplices em um golpe praticado com a finalidade de impor o programa político derrotado nas eleições e agem a partir de uma maioria política decorrente de um pleito em que, como agora se escancara, a obtenção de financiamentos de campanha polpudos vindos de grandes corporações voltadas à captura do Estado e interessadas na derrubada dos direitos sociais era quase condição para se eleger.
Se assim digo, pode-se extrair do enunciado a conclusão de que restringir direitos não é ilegítimo em si e que poderes que não apresentassem essas máculas teriam autoridade para fazê-lo. Claro que podemos resistir politicamente à aprovação de mudanças dessa natureza ou mesmo discutir se são afetadas cláusulas pétreas, mas, em tese, uma maioria conservadora resultante de mandatos conscientemente atribuídos tem a autoridade política para assim agir.
O problema não está, portanto, em aprovar medidas impopulares; o problema está na ilegitimidade para fazê-lo.
Disso pode surgir a dúvida sobre eficácia jurídica da aprovação de semelhantes medidas nas condições políticas atuais. É, evidentemente, uma questão que levanto quase que só como hipótese para uma discussão jurídico-filosófica, porque sei bem que no mundo real, esse em que os golpes são dados sem rubor, o que o Congresso aprovar valerá, porque tudo o até agora feito recebeu o carimbo da aprovação dos poderes.
Mas há ainda outra questão, e esta vai dirigida aos críticos que, como eu, denunciam o golpe e a ilegitimidade da produção legislativa que dele resulta. Está no ar a tentação a um raciocínio que, partindo dessa visão de ilegitimidade, a transfere de viés para o conteúdo das propostas que em algum momento recebem a simpatia de parlamentares identificados como golpistas. Constrói-se a partir dele um silogismo obtuso, pelo qual qualquer proposta que assim tramite é, por definição, ruim e portadora de intenções obscuras.
Um exemplo disso está nas discussões sobre a alteração do sistema eleitoral, para a introdução do voto em lista fechada. Algumas notícias que informam a circulação de tais propósitos no Congresso dizem que a ideia se gesta num plano mais amplo de blindagem de parlamentares envolvidos em delações. Assim apresentada, a notícia passa a ser comprada como mais um complô contra a democracia, e posta num índex de medidas espúrias, corretamente encabeçada pela reforma trabalhista e previdenciária.
Começou há alguns meses, quando, num daqueles famosos vazamentos, foi captada uma fala de Renan Calheiros, dizendo que a solução era o voto em lista. Várias pessoas que admiro pela perspicácia, saltaram imediatamente dizendo: viu, querem aprovar essa bandalheira! Agora, que assunto se torna mais frequente na imprensa, outros tantos que admiro repetem que é uma manobra dos corruptos e que a aprovação da lista fechada só servirá para salvar as burocracias partidárias.
Concordo com duas coisas. A primeira é de conteúdo: o voto em listas fechadas estimula o fortalecimento das burocracias partidárias, porque são estas que tenderão a encabeçar as listas e, portanto, ser eleitas. Já a segunda está no âmbito da preocupação com isso estar sendo gestado neste momento neste Congresso. É, de fato, uma cautela necessária desconfiar de qualquer coisa que esteja sendo gestada neste momento e neste ambiente.
Mas é nesse ponto que paro. Primeiro, preciso dizer da absoluta necessidade de distinguir entre o conteúdo das propostas e a alegada ilegitimidade de quem pretende aprová-las, Isso é fundamental, para que não se chegue ao tal silogismo enviesado, que tem como premissa que o Congresso não presta e chega à conclusão de que qualquer proposta que ele aprovar não presta. Não é o fato de o Congresso não prestar, e sim seu conteúdo, que torna ruins a reforma trabalhista e da previdência.
Por isso, é falso quando dizem, sobre a adoção do voto em lista fechada: “vejam, esses picaretas querem aprovar essa excrecência”.
O fato é que, ultrapassada a legítima preocupação com a possibilidade de a proposta estar num pacote com interesses sub-reptícios – me ocorre um, segundo o qual muito deputado imagina que, com o desgaste que sofreu, terá dificuldades em ainda se eleger com o voto nominal –, só resta a crítica ao fortalecimento da burocracia partidária.
Mas aí é que está minha grande divergência, porque, lá onde outros veem algo terrível, só percebo um efeito colateral menor.
E começo perguntando: a burocracia dos partidos já não está nos legislativos? Tudo bem, podemos imaginar que muitos deputados não são burocratas gestados na máquina partidária e só passaram a fazer parte dela em razão de seus vínculos com as bases. Tomemos isso como certo, e tracemos uma distinção entre o deputado com base eleitoral e o profissional do partido cujo poder vem da ocupação da máquina.
De qualquer maneira, dado o que se instalou em Brasília, não seria ao menos lícito perguntarmos se, de fato, deputados vinculados com a base são mais virtuosos que os integrantes das burocracias partidárias? São imunes ao financiamento empresarial de campanha? Aliás, pergunto se há uma clara distinção entre os que emergiram da burocracia e os que emergiram das bases. Imagino que nem ao menos exista um estudo sobre isso.
Agora, uma coisa que está muito clara é que o sistema do voto uninominal com representação proporcional, como existente no Brasil, tem, cada vez mais, permitido a eleição dos muito ricos, que têm dinheiro para suas campanhas, ou dos que conseguem ter sua campanha financiada pelos muito ricos, e ficam com eles comprometidos.
O Brasil se transformou numa plutocracia, graças, em parte, ao financiamento empresarial de campanha, em parte, ao voto uninominal, pelo qual pobre não se elege.
Por outro lado, o próprio financiamento empresarial, hoje proibido por decisão do Supremo, mas ainda vigente pela via do Caixa 2, teria seu impacto muito diluído se o voto fosse em listas fechadas. Isso porque, havendo quatro ou cinco siglas – ou dez ou mesmo as absurdas dezenas que se produziram no Brasil (mas isso é outra conversa) –, o número de opções seria reduzido, e reduzido não para uns poucos candidatos, mas alguns poucos partidos, o que significaria que o voto teria de ser dado por preferência partidária, e não mais em indivíduos, geralmente descomprometidos com programas.
Até sugiro, aos que acham um absurdo trocar nosso modo de eleger o legislativo, que a cada eleição produz legislativos piores, pelo voto em lista fechada, pesquisarem que grande democracia adota o nosso sistema e que grande democracia adota o sistema de lista fechada. Depois de descobrirem que somos praticamente únicos no mundo, pesquisem ainda onde existe voto em lista com a possibilidade de alteração da ordem pelo eleitor, e verão que, no voto em lista, em suas versões fechada e mitigada, estão quase todos os países com democracia consolidada que não adotam o sistema distrital puro.
Falando em listas partidárias mitigadas, talvez seja bom lembrar a iniciativa brasileira, coordenada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que, ao apresentar Projeto de Lei pela reforma política democrática e eleições limpas, propôs o voto proporcional em dois turnos, no qual se combinassem a ordem estabelecida pelos partidos e a vontade do eleitor. Aliás, é desalentador perceber como ideias renovadoras de dois anos atrás foram tão rapidamente esquecidas.
Devo acrescentar, para não parecer ingênuo, que não pretendo explicar a corrupção somente – ou principalmente – a partir do sistema eleitoral em vigor, mas não tenho dúvida de que ela se vê facilitada pelo voto em indivíduos, em que se elegem os que fazem campanhas ricas e, depois de eleitos, minam os partidos com seus comportamentos individualistas.
Mas, principalmente, esse sistema que não querem mudar é o causador da fragilidade dos partidos e da total diluição do Congresso, que leva à ingovernabilidade ou, tragicamente, a uma governabilidade construída pelo que, eufemisticamente, FHC certa feita cunhou como relações não assépticas.
Uma das maiores imbecilidades que se podem ouvir em política, infelizmente tão arraigada entre os brasileiros, é aquela, dita com peito estufado: eu voto na pessoa!
Não sei se é por incompreensão do que isso significa ou por terem caído na arapuca do pensamento binário, pelo qual é desnecessário discutir qualquer proposta legislativa proposta nesses tempos sombrios, porque todas são por definição ruins, que hoje vejo pessoas críticas torpedearem a ideia de voto em lista e, por extensão, defenderem o terrível sistema brasileiro, que só serve para a despartidarização e a plutocratização da política.
Sempre achei muito difícil que o sistema de eleição em listas pudesse ser aprovado no Brasil, não só pela cultura do ‘eu voto na pessoa’, como também porque não é de se esperar que um Congresso que se elege por uma determinada regra queira substituí-la por outra. Parece que agora, mesmo que por motivos menos nobres, a oportunidade apareceu.
Espero que ela não seja jogada no lixo por pressão de quem luta pela democracia. Não é todo dia que o cavalo passa encilhado.
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