A fábrica de linguiças

As leis são como linguiças: se as pessoas soubessem como são feitas, não as comeriam.

É mais ou menos assim a frase, que, dizem, nunca foi pronunciada por Bismarck, embora ele tenha levado a fama.

Não tem a ver com ideologia, falsa consciência, reificação, em suma, com as condições de ignorância que impedem as pessoas de conhecerem a realidade opressora e se revoltarem contra ela.

Também não tem a ver com a escolha dos legisladores, com o fato de que os congressistas são, em geral, ricos, eleitos com o apoio de grandes corporações, com cuja defesa estão comprometidos.

Não, tudo isso poderia existir, e ainda não se estaria no plano da fabricação de linguiças. Um Congresso plutocrático provavelmente aprovará leis em defesa dos ricos, porque é da essência dos congressistas aprovarem leis que beneficiem seu extrato social ou quem financia suas campanhas. Também produzirá leis que atendam ao senso comum reificado, como, por exemplo, acontece na adoção de leis punitivas para responder ao sentimento de medo da sociedade.

Comparar a produção das leis à fabricação de linguiças é outra coisa: aponta para o uso de ingredientes sebentos, de restos de entranhas e para a total ausência de higiene. Se ainda hoje ocasionalmente se descobrem linguiças com carne de gato ou rato, imagine-se no século XIX de Bismarck, época em que, aliás, foram produzidas as saborosas linguiças da Rua do Arvoredo, entre cujos ingredientes havia carne humana.

Pois, na famosa frase, é assim que se produzem as leis. Poderíamos, talvez, ampliar mais um pouco, e dizer que é assim que se governa. Por outro lado, sempre resisti a pensar que também é assim que se julga, embora cada vez mais me espante com o pragmatismo que parece pautar certos julgamentos.

Mas chega um certo momento em que tudo, inclusive o julgar, parece estar a serviço de uma pauta legislativa, vista como a salvação da Nação. Precisa passar a PEC do fim do mundo para salvar a Nação, precisa desmanchar a previdência pública para salvar a Nação, precisa até socorrer o Governo para salvar a Nação. Precisa salvar a Nação. E nos altos círculos do Poder se forma esse estranho convencimento, construído em cima de um enunciado, formulado por não sei quem, segundo o qual a Nação só será salva se os compromissos sociais do Estado forem reduzidos a um nada.

Aliás, foi bom falar em Bismarck. Pois esse reacionário fanfarrão e ególatra, por muitos apontado como o maior responsável pelo caldo de cultura que décadas depois fez surgir o nazismo, foi também mentor de grandes realizações, que não se resumiram à unificação da Alemanha. Uma delas foi o pioneirismo na instituição da previdência pública, que agora, em pleno século XXI, deve ser sacrificada em homenagem à voracidade do capital financeiro.

Então, nesse esforço para que a Nação se salve, parte-se para conchavos noturnos entre poderes, noticiados com a maior naturalidade pelos meios de comunicação. Os comentários nas ruas são esses, é disso que o povo fala, revelando desencanto com as instituições.

A imagem da semana poderiam ser os sorrisos vistos na distribuição de prêmios de destaque por uma revista, mas isso é pouco. Para mim, a imagem (imaginada) da semana é uma grande fábrica de linguiças a céu aberto, que permitiu a cada brasileiro saber como elas são fabricadas.

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