A eleição é municipal e ninguém fala em Câmara de Vereadores, algo de menor importância nesse degradado quadro político. Também não falarei nisso, mas nas regras pelas quais os vereadores são eleitos, porque são as mesmas que elegem os deputados.
Ninguém discordará se eu disser que hoje temos a pior composição da Câmara dos Deputados em muitos anos, com certeza a pior desde a conquista da democracia. E não é só porque, em razão do enfraquecimento da esquerda, houve uma alteração de viés ideológico, mesmo porque os conservadores também sabem fazer bons políticos.
A questão é muito mais grave, porque temos uma Câmara dos Deputados abastardada, onde, além das venialidades disseminadas, se formam articulações e maiorias cuja razão de existir passa longe dos partidos. Hoje, há mais coesão em alguns grupos de interesse direitistas, como a Bancada BBB – boi, bíblia e bala –, do que na maior parte das bancadas partidárias.
Com certeza, embora muitos digam que o Congresso reflete nossa sociedade e acusem o eleitor pela criação dessa monstruosidade, o legislativo é muito pior, muito mais fisiológico, muito mais desonesto que nossa sociedade, e em grande medida isso decorre das regras pelas quais se elege e pelas quais os parlamentares se vinculam aos partidos.
A expressão mercado eleitoral, comum entre cientistas políticos, está potencializada na legislação brasileira, e aqui se apresenta na forma do mercado mais selvagem e predador, onde as regras favorecem uma composição organicamente anárquica, mas de uma inédita funcionalidade à manutenção do poder mais reacionário.
A primeira grande característica brasileira, que permite aos analfabetos políticos encherem o peito e dizerem “eu voto na pessoa”, é a regra do voto uninominal combinado com eleição proporcional. Por esse sistema, de que o Brasil é um raro e orgulhoso representante (fale-se em voto em lista e o mundo virá abaixo), a representação partidária é calculada pela soma dos votos na legenda, embora o voto seja dado individualmente.
Desse modo – e ainda mais em tempos nos quais a palavra partido virou palavrão –, o voto não se dá por convicções ideológicas, mas por simpatias pessoais: é o voto no compadre, no jogador de futebol, no que se apresenta como novo, no que se apresenta como experiente, geralmente no que mais aparece, ou seja, aquele que tem mais dinheiro para fazer campanha.
A ilusão do eleitor é de que votou bem, todos os eleitores pensam que votam bem. Mas, o resultado final – e atribuímos a culpa aos outros, que não sabem votar – é o que vemos.
É certo que nos países europeus, onde se vota em lista partidária, os partidos passam por crise de legitimidade, mas lá o resultado da votação é previsível e partidário: vota-se na lista do partido A, do partido B, do partido C, e cada um desses partidos elege para o Congresso um número de deputados proporcional à sua votação. São deputados indicados pelos partidos, fiéis à linha partidária. Há quem veja nisso o fortalecimento de uma burocracia partidária, mas é um mal menor diante do que se vê no Brasil.
Lá se tem o que aqui é inimaginável: há programas oferecidos ao eleitor, e ele escolhe um dos programas postos. Pode ser da direita xenófoba, pode ser da esquerda radical ou do centro mais inodoro: ele opta pelo programa que quer aplicado para a sociedade.
Mas não é só por isso que chegamos a quadro tão deplorável: por muito tempo os partidos souberam expressar, com maior ou menor fidelidade, alguns ideais programáticos. Todos sabemos, por exemplo, o que representavam o PTB, a UDN e o PSD antes de 64.
Ao longo dos anos se acrescentaram àquela formatação do sistema brasileiro algumas características, que hoje permitem a eleição de um Congresso em que se somam interesses particularistas e no qual o resultado final é a consolidação do poder econômico e a perda de direitos sociais.
Uma delas é o poder econômico. A regra é que ganhe a eleição quem tem muito dinheiro para fazer campanha, seja porque é rico, seja porque consegue dinheiro dos ricos. As exceções à regra são os famosos (artistas, jogadores de futebol, apresentadores de televisão) e os representantes das cada vez mais enfraquecidas siglas ideológicas.
Isso significa, paralelamente ao cada vez mais tênue compromisso partidário, um alinhamento com interesses econômicos. Podem ser até interesses particulares, como o compromisso dos ruralistas com suas bandeiras específicas, mas se somam quando se trata de eliminar direitos sociais, porque há uma unidade ideológica mais difusa, o que não significa menos sólida, em torno de interesses de classe.
O fato é que ricos se elegem e pobres não se elegem, ou se elegem só quando patrocinados pelos ricos, e nesse caso o resultado é o mesmo.
Essas coisas se dão com nuances, mas a regra final é a mesma. Tomemos a Bancada BBB. Os ruralistas têm expressão eleitoral muito superior à sua proporção na população porque se tornam caciques de partidos conservadores em cidades médias, polos em regiões de produção agrícola, onde capturam o voto urbano. Os representantes da bala conseguem somar o desejo vingativo da sociedade – nesse ponto, são ideológicos – aos interesses corporativos de policiais e ainda obtém financiamento de campanha da indústria de armas. Os da bíblia também carregam um interesse ideológico claro, das igrejas neopentecostais, amparado num discurso de unidade muito próximo ao de um verdadeiro partido da religião, mas também sustentado por recursos materiais significativos, oriundos do proselitismo das igrejas. Assim, conseguem representações fortes, de uma maneira que prescinde dos partidos e permite formar bancadas conservadoras mais fortes que aquelas que qualquer partido conservador jamais conseguiu montar no Brasil.
A proibição de financiamento de campanha por pessoas jurídicas foi importante para reduzir esse efeito, mas, como num laboratório para 2018, vemos nestas eleições municipais candidatos receberem enormes doações de executivos ou outros laranjas de empresas. Além disso, se a doação de pessoas jurídicas é proibida, isso não afeta a possibilidade de os candidatos ricos continuarem a fazer valer seu poder econômico individual.
Um segundo aspecto a considerar é o afrouxamento cada vez maior das regras de fidelidade partidária, o que permite a cada deputado votar como bem entende, sem nenhuma sanção. Do mesmo modo, legislando em causa própria, o Congresso afrouxa as regras que permitem a mudança de partido, de modo que passa a ocorrer a representação simultânea de dezenas de partidos sem identidade, que abrigam interesses particulares, apenas tornados coletivos para sacramentar os grandes lóbis dos retrocessos sociais. As maiorias não se formam por critérios partidários, mas pela articulação dessa geleia disforme, que se libertou das amarras partidárias.
A isso se soma a inexistência de cláusulas de barreira, que impeçam a representação dos partidos sub-representados pelas urnas. Há alguns anos, o próprio Congresso aprovou mudança na lei eleitoral, estabelecendo uma cláusula de barreira de 5% dos votos, mas o STF declarou a norma inconstitucional.
Devo dizer que, em nome do direito de representação das minorias ideológicas, considerei então acertada a decisão do Supremo. O problema é que, em combinação com as características antes descritas, essa ideia de preservação de pequenos partidos ideológicos permitiu a criação do monstro em que se transformou o Congresso.
Foi um preço muito alto, e, se hoje penso a preservação de pequenos partidos, imagino que ela seria possível por meio de coligações nacionais que somassem votos de legendas menores, de modo a assegurarem as votações mínimas exigidas.
E as coligações para o voto proporcional deveriam observar dois requisitos fundamentais: primeiro, serem nacionais, segundo, imporem que as bancadas assim eleitas se organizassem posteriormente como bancada no Congresso, como se formassem um único partido.
Hoje, facilitada pelas dimensões continentais do Brasil, a realização de coligações não obedece a nenhuma lógica, e em cada canto do país os acertos se dão conforme as simpatias locais, reunindo aqui golpistas e golpeados, ali direita e esquerda, lá adiante o contrário do que acontece um pouquinho além. Parece que esquizofrenia entrou para o índex das palavras politicamente incorretas, mas ainda não achei uma palavra que a substitua tão bem para designar essa prática, que acaba com o resto de identidade que alguns partidos ainda têm.
Talvez me fujam neste momento outros pontos de crítica, mas penso ter tocado nos principais. As eleições se decidem cada vez mais pelo dinheiro e cada vez menos por critérios partidários, e chegamos a um ponto em que os partidos escondem mesmo suas siglas. Aprofundou-se esse círculo vicioso, em que, reduzidos à disformidade, os partidos fortalecem o sentimento antipartidário da população e se escondem do eleitor, que cada vez mais optará pelo demagogo que melhor souber iludi-lo.
Enquanto nossa legislação partidária e eleitoral se mantiver desse modo, o legislativo brasileiro será pior após cada eleição. E, mais uma vez, não vejo motivos para grandes esperanças, porque quem pode mudar as regras é ele próprio. Por que o faria?
Por isso, seguiremos votando na pessoa. É o que faremos hoje. Depois, para nos absolvermos individualmente, diremos que brasileiro não sabe votar.
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