Foi um ato falho, com tudo o que se pode extrair dos atos falhos. A França não aprovou 80 horas semanais de trabalho – se o fizesse estaria voltando 200 anos na história. Mas o presidente da CNI, após participar de reunião com Temer, conseguiu se sair com essa. Mais: louvou o governo francês por ter implantado a reforma sem ouvir o parlamento. Está clara a sugestão para o interino: aumente a jornada de trabalho por medida provisória.
Com certeza, nada semelhante será feito antes da votação do impeachment – as maldades ficarão para depois –, mas está claro o propósito, que de resto integra um conjunto de iniciativas para reduzir os direitos trabalhistas no Brasil. A lista é quase infinita, e envolve uma crescente terceirização, o enfraquecimento dos sindicatos e da Justiça do Trabalho, a relativização das normas trabalhistas, entre tantas outras coisas.
Até mesmo o conceito de trabalho escravo deve se tornar mais brando, para excluir de sua conceituação a jornada exaustiva e o trabalho degradante. Combina com 80 horas.
Mas por que isso acontece hoje? Parece estranho, quando se vê a evolução histórica dos direitos dos trabalhadores, ouvir semelhantes propostas em pleno 2016, e mais estranho ainda é que não seja motivo de escândalo. Afinal, quando Marx e Engels escreveram o Manifesto Comunista, Inglaterra e França já haviam reduzido as jornadas semanais para 60 horas, seis dias de dez horas. E a jornada de oito horas diárias ou 48 semanais foi estabelecida pela OIT em 1919 e tornada norma constitucional no Brasil em 1937.
Por que, então, em pleno século XXI, o líder máximo dos industriais brasileiros fala em 80 horas, ou 60 que sejam? Há muito é sabido que não se confirmou aquela ideia de redução gradual da jornada de trabalho, na proporção em que as máquinas substituiriam o trabalho humano, porque a ilimitada criação de novas necessidades e infinitos serviços fez com que a atividade fabril reduzisse gradativamente sua proporção na absorção de mão de obra. Mesmo assim, nunca antes havia se colocado de modo tão claro a perda do até então conquistado.
A própria ideia de um progresso contínuo e permanente, em que amanhã viveremos melhor que hoje, tão importante na justificação do próprio capitalismo, parece sossobrar quando se propõem de modo tão explícito semelhantes retrocessos.
Mas nada é surpreendente, e quando o presidente da CNI diz que a França precisa aumentar a jornada porque perdeu competitividade, talvez diga a verdade. É isso que acontece hoje: o mundo é o território do capital, e não há Estado nacional que lhe resista.
A absoluta internacionalização que se intensificou nos anos 80, coincidindo com a queda do rival soviético, permitiu um campo propício para que se derrubassem os entraves à competição absoluta. Se um governo tenta criar limites à desenfreada concentração de renda e propriedade, os paraísos fiscais estão aí para acolher os ricos; se as regras trabalhistas de um país impedem a exploração desenfreada, sempre haverá outro em que o custo de produção fica mais em conta, até mesmo com mão de obra escrava.
Isso é um fato histórico. Mas é mais que um fato: é também um discurso. É o discurso da inevitabilidade. O discurso de uma ciência econômica neutra, que chancela, pela competição internacional, os retrocessos sociais.
E, por ser neutra, por ser ciência, não é ideológica. Visto desse modo, houve apenas um pequeno engano do presidente da CNI: ele se equivocou ao dizer 80 horas, mas a jornada de trabalho precisa aumentar e os direitos sociais retroceder. Se isso não acontecer, perderemos competitividade.
Tudo isso parece inevitável, menos para quem sabe o alcance da palavra ideologia.
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Em meu artigo anterior, aponto a impostura de que quem questiona o posto é ideológico, e de que o posto nunca será visto como ideológico. Faltou acrescentar lá o discurso da ciência como fonte de autoridade, contra o ideológico. Ainda que se trate da chamada ciência econômica, tomada como postulado a partir de uma de suas escolas, que, por coincidência, justifica, em nome da competitividade, o discurso dos retrocessos sociais.
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